“A Liberdade do Drible” (Quetzal, 2015), de Dinis Machado (1930-2008), reúne um conjunto de crónicas publicadas em vários jornais com os quais o autor colaborou, e que em boa hora a Quetzal teve a ideia de reunir em livro. O denominador comum é o futebol, resgatado às memórias da juventude do autor, de um tempo em que as bolas de cautchu, o peão, o W-M e o amor à camisola ainda não haviam sido substituídos pelos fundos de jogadores, o pay-per-view, o duplo pivô e os Maxis Pereiras desta vida.
Dinis Machado legou-nos “O Que Diz Molero” (1977), iglantónico relato das dores de crescimento da infância e da descoberta de si, bem como um punhado de policiais escritos sob pseudónimo, tendo de resto cultivado a dispersão por diversos ofícios da escrita, passando pelo jornalismo desportivo, a crítica de cinema, o guionismo, a tradução e a edição. O ecletismo do seu percurso transparece ao longo destas 23 crónicas, onde não é raro que a uma referência a Puskas se siga uma menção a Rembrandt ou uma citação de Fellini. Tal como se diz do encadeamento das conversas e da ingestão de cerejas.
Em “O Osso da Vida”, o autor anuncia a sua intenção de “deixar pra lá o escritor“, de abandonar o seu lado grave, laborioso e sempre adiado, e entregar-se à espuma dos dias de que os cronistas fazem profissão de fé; em “Onde Começa o Futebol” inicia a sua viagem sideral ao país da infância, recordando como uma casca de laranja feita bola de futebol fazia a felicidade das crianças nas futeboladas de rua durante os anos de chumbo da ditadura; “Seis Quadros de uma Exposição” compara o futebol a uma arte espontânea que, através do movimento, carrega uma carga quase infinita de rumos imprevisíveis; “A Chapa Dez e Outros” relembra as grandes cabazadas de antanho, que o catenaccio fez desaparecer; “Ter Mais um Jogador” faz a apologia dessa voz não encartada que é a do treinador de bancada. Em “Guarda-Redes, o Lugar e o Risco” tece um elogio à combinação entre elasticidade, nervos de aço e coragem física que é característica de todo o bom keeper; “O Sonho do Velho Treinador” recorda o confronto de juventude contra uma equipa de rapazes orientados por um treinador idealista que antecipou em vários anos o futebol total dos holandeses, e que também acabou derrotado como Cruyff e companhia; “A Entrevista do Juvenil Contentamento” relembra a entrevista que lhe deu Peyroteo para uma revista escolar de pouca dura, e da humildade e simpatia no trato do mais afinado dos violinos; “A Infância e o Futebol” admite, não sem embaraço, que o outono mental e físico é a estação de eleição para a afirmação da memória.
O encanto do futebol reside, para Dinis Machado, no facto de, apesar de submetido a muitas regras, conter uma grande margem de imprevisibilidade. Tal como a própria vida.
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