Um bolo da cor da terra molhada aguarda num congelador. Trata-se de uma espécie de pudim de ameixas, embebido em rum, com massapão e uma miríade de outros ingredientes, legado por uma moribunda aos seus filhos, com a indicação de que deverão sentar-se e partilhá-lo “quando chegar a altura certa”. Para fazê-los compreender o que está em causa, existe um ficheiro áudio, confiado ao advogado da família, “que demorou mais de oito horas, ao longo de quatro dias, a gravar”, contendo segredos que mudarão as suas vidas.
Este “Bolo Negro” (Porto Editora, 2022), além de dar título ao romance de estreia de Charmaine Wilkerson, desempenha vários papéis cruciais. Enquanto conjugação inovadora de ingredientes trazidos por diferentes povos, representa o multiculturalismo caribenho, sendo esta herança cultural convertida em tradição familiar – a única que uma certa migrante das Caraíbas nos Estados Unidos podia transmitir aos filhos. Ele é, também, uma metáfora para as relações humanas, na medida em que a receita, no papel, parece relativamente simples, mas o seu sucesso depende da qualidade dos ingredientes, do manuseamento destes, dos tempos dos vários processos e da reacção a variáveis ambientais. Ele é, mais prosaicamente, a arma de um crime de homicídio, cometido para salvar uma vida que iria ser sacrificada.
Os irmãos Byron e Benedetta – mais conhecida como Benny –, outrora unidos e depois afastados por uma sucessão de desentendimentos e ressentimentos acumulados, reaprendem a comunicar, ao mesmo tempo que descobrem como a maldade de uns e a bondade de outros marcaram a mãe, aprisionando-a noutras identidades que foi assumindo, não só para auto-preservação, mas também para proteger aqueles que a ajudaram. Afinal, “as histórias por contar moldam as vidas das pessoas, tanto quando são retidas como quando são reveladas”.
Através de saltos temporais e da alternância de perspectivas, a autora reconstitui as narrativas de várias personagens, entrelaçando-as com questões sociais, como os fluxos migratórios, a violência exercida contra as mulheres, as redes de relações femininas que passam despercebidas aos homens, a discriminação racial e os constrangimentos sociais. Byron, por exemplo, é um cientista negro que alcançou uma certa notoriedade, mas vive com o terror de saber que um mal-entendido com um polícia numa estrada pode ser o seu fim. Por seu lado, Benny, que abandonou a universidade, sente-se posta em causa, até pela própria família, por sentir que não encaixa nos papéis que esperam vê-la desempenhar. Entre fugas, desavenças, reencontros, a descoberta de uma irmã desconhecida e uma intriga criminal desvendada apenas nas últimas páginas, será talvez este o tema que mais se destaca: a luta pela definição de identidades pessoais, mais difícil quando os sonhos se opõem às expectativas da sociedade, mas mais doce quando o triunfo pode ser comemorado com um bolo delicioso.
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