Esqueçamos tudo o que julgamos saber acerca do submundo do crime organizado japonês, suspendamos a descrença, armemo-nos com doses brutais de humor negro e deixemo-nos conduzir por Kotaro Isaka numa viagem a alta velocidade a bordo do shinkansen, o comboio-bala, em “Bullet Train” (Asa, 2022).
As quase 500 páginas do livro centram-se num trajecto de duas horas e meia entre Tóquio e Morioka, num comboio que “não está especialmente cheio”, mas transporta uma concentração invulgar de assassinos. Um par que se destaca, famoso pela violência eficaz com que cumpre as suas missões, usa nomes de frutos como alcunhas: Limão e Tangerina. Apesar das semelhanças físicas – ambos são altos, magros e de cabelos compridos – não podiam ser mais diferentes: Tangerina é organizado, lê romances e é capaz de citar Dostoievski, enquanto Limão é desleixado e tem uma fixação por um programa infantil protagonizado por comboios. Depois de terem salvo o filho raptado de um senhor do crime e recuperado a mala com o dinheiro do resgate, um descuido de Limão logo após o embarque faz com que percam a mala – e como se isso não bastasse para os deixar em maus lençóis, o rapaz é misteriosamente morto enquanto a procuram.
Sabemos desde muito cedo que quem se apoderou da mala foi um terceiro mercenário – contratado especificamente para esse fim por razões que ele próprio ignora –, uma figura insuspeita com óculos de aros negros, atormentada por um azar que é como uma maldição, sabotando constantemente todos os seus esforços “para fazer as coisas como deve ser”.
Quem não tem falta de sorte é o verdadeiro psicopata a bordo, “uma criatura ardilosa” oculta sob uma máscara de inocência e aprumo, para quem o crime é um prazer e não um ganha-pão. Trata-se de um estudante de 14 anos, conhecido como O Príncipe, bem-falante e altamente inteligente, fascinado por técnicas de manipulação do comportamento humano e convencido da sua superioridade sobre os demais, ao ponto de se orgulhar de saber utilizar histórias do genocídio do Ruanda como fonte de inspiração para reforçar o clima de terror que implementou entre os colegas de escola. Numa narrativa onde abundam os diálogos delirantes e um exagero carnavalesco, a seriedade na descrição do raciocínio e dos feitos desta personagem tornam-na muito mais real e assustadora que os conflitos entre gangues.
Sabendo-se perseguido pelo pai de uma criança de três anos que deixou em coma, O Príncipe embarca no comboio para armar-lhe uma cilada, mas não tarda a sentir-se atraído pelos mistérios que envolvem os outros passageiros estranhos, dedicando-se então a aumentar o caos, por mero desejo de assistir a um espetáculo interessante.
O notório pendor do autor para o rocambolesco expande-se até aos limites do cenário confinado do comboio-bala e ainda mais além, através de um enredo intrincado, no qual os cadáveres se amontoam e surgem inesperadamente novos assassinos, mantendo-nos até ao fim sem saber quem sairá vivo de tão alucinante viagem.
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