Há uns bons anos atrás, a Editorial Presença iniciou a publicação – infelizmente apenas estendida a 17 dos 33 números originais – de A Biblioteca de Babel, uma colecção de obras fantásticas escolhidas a dedo pelo argentino Jorge Luis Borges. Uma colecção que, independentemente das obras, valia todo o dinheiro gasto somente pelos prefácios de Borges, o mestre das narrativas curtas.
Com edição em capa dura pela Quetzal, “Poesia Completa” (Quetzal, 2022) apresenta aos leitores o lado menos conhecido de Borges. E, tal como na colecção de literatura fantástica que dirigiu, vale muito para lá dos poemas, com introduções – e/ou posfácios – a cada uma das obras aqui reunidas que são um verdadeiro festim para o leitor. Veja-se, por exemplo, o epílogo desenhado para O Fazedor (1960) – onde encontramos também muitos textos em prosa poética:
«Queira Deus que a monotonia essencial desta miscelânia (que o tempo compilou, não eu, e que admite peças pretéritas que não me atrevi a emendar, porque as escrevi com outro conceito de literatura) seja menos evidente que a diversidade geográfica ou histórica dos temas. De todos os livros que entreguei à tipografia nenhum, creio, é tão pessoal como esta coletícia e desordenada silva de vária lição, precisamente porque abunda em reflexos e em interpolações. Poucas coisas aconteceram e muitas li. Melhor dizendo: poucas coisas me aconteceram mais dignas de memória que o pensamento de Schopenhauer ou a música verbal da Inglaterra.
Um homem propõe-se a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naves, de ilhas, de peixes, de quartos, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem do seu rosto.»
Trata-se de uma viagem imensa, na qual descobrimos, como numa música a rolar num eterno loop, todo o imaginário que habita os seus contos: os livros, os labirintos, o peso das memória, (sempre) os espelhos, os grandes textos que permanecem como alimento para a vida. Ou, a certa altura, uma definição certeira da (sua) poesia, que resulta no melhor dos convites: “A poesia não é menos misteriosa que os outros elementos do orbe. Este ou aquele verso afortunado não pode envaidecer-nos, porque é dom do Acaso ou do Espírito; só os erros são nossos. Espero que o leitor descubra nas minhas páginas qualquer coisa que possa merecer-lhe memória; neste mundo a beleza é vulgar”. Num dado momento, o chileno Roberto Bolaño disse isto: “Quando Borges morreu, tudo parou”. Escutemos de novo o bater do coração do mestre.
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