É uma espécie de puzzle literário, que arrancou com “O Pianista de Hotel”, prosseguiu em “Jogos de Raiva” e terá ficado completo, arriscamos, neste “Cuidado com o Cão” (D. Quixote, 2022). Um romance de Rodrigo Guedes de Carvalho que, tal como em “O Sétimo Selo” Bergmaniano, tem a morte a morder-lhe os calcanhares, ainda que não haja aqui um tabuleiro de xadrez preparado. Apenas o latir de vários cães, banda sonora que acompanha cada uma das personagens de um livro entre a culpa e a expiação redentora.
Em paralelo e até à inevitável colisão, são duas as histórias – e as linhas temporais – que o leitor acompanha: a do médico Pedro Gouveia – e sua família – e a das gémeas Adriana e Luciana, trapezistas de circo desde a infância.
O protagonista dá pelo nome de António Pedro, um antigo cirurgião que, na sua solitária e amarga velhice, se vê visitado durante o confinamento por uma (aparentemente) desconhecida, que o leva a percorrer toda uma existência como num sonho acordado. Entre essas memórias e património familiar estão, entre outros, a filha Mafalda Gouveia, dividida desde muito nova entre a medicina – “na sua excelente condição atlética de Curso dos Cursos” – e a música – que “desde sempre a traz rasgada e feliz no coração e cérebro e estômago, e acelera todo o sangue que circula”, ou Maria Amélia, psiquiatra, melhor amiga e confidente preferencial.
A par desta árvore genealógica temos mágoa, mancha e mácula. Um triângulo vertiginoso e divergente que está no centro da relação das também divergentes gémeas Adriana e Luciana, que construíram, no mesmo lugar, um circo diferente para cada uma. “O circo de Adriana é o de Chaplin, do Cantiflas, dos irmãos Marx. Pobre mas honrado e feliz. Ternura e gargalhadas. (…) O circo de Luciana é o de Fellini, uma Strada de miséria e sofrimento sem fim, Giuletta Masina a levar tabefes. O circo de Luciana é desencanto e dor, é o primeiro Joker”.
Ao longo do livro, o leitor irá reencontrar temas familiares em Rodrigo Guedes de Carvalho, como a violência doméstica ou a doença mental, mas há também a surpreendente presença dos Beatles ou as muitas histórias de outras gémeas, como as de Pip e Flip, “umas pobres microcéfalas da Georgia, com a idade mental de crianças subdesenvolvidas”; June e Jennifer, “uma sociedade secreta de um único par de membros, de porta fechada a qualquer alma externa”; ou das gémeas de Macuelane, que “apareciam em todo o lado quando era preciso, como se batessem asas com as garças por cima dos qunhentos quilómetros de um lago que parece o mar, sendo diferentes os significados consoante apareciam, a quem conseguia vê-las, as duas ou só uma”.
A tragédia marca presença como em qualquer outro livro do autor, mas talvez encontremos neste “Cuidado com o Cão” um maior optimismo. Por trás deste claro aviso de perigo, visto em azulejos ou placas penduradas em portões de ferro, esconde-se uma outra verdade mais desafiante: O amor mete tanto medo (que nos atira para a frente).
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