“Gosto de variar o tema. De cada vez que escrevo quero fazer algo de novo. Apanho as minhas ideias de todo o lado, desde os jornais ao twitter, à vida real”. As palavras pertencem a Colson Whitehead, e foram proferidas em Outubro último quando esteve na Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD). Uma conversa conduzida pela jornalista e escritora Isabel Lucas, centrada em “Ao Ritmo de Harlem” (Alfaguara, 2022), o primeiro volume de uma trilogia criminal publicado pela Alfaguara – editora que havia lançado os dois outros títulos de Whitehead disponíveis no mercado nacional: “A Estrada Subterrânea” e “Os Rapazes de Nickel”.
Para aqueles que tiverem lido (apenas) “A Estrada Subterrânea” e “Os Rapazes de Nickel”, “Ao Ritmo de Harlem” poderá assemelhar-se a um estranho objecto: no lugar de uma ferida aberta – ou, pelo menos, exposta ao olhar -, descobrimos um bairro pulsante dominado por pequenos trafulhas, episódios com uma mistura bem doseada de comédia e tragédia e muita – mesmo muita – conversa sobre mobiliário.
O protagonista dá pelo nome de Ray Carney, vendedor de mobília, pai de família, homem aparentemente pacato e engenhocas, que a ter um cartão-de-visita diria qualquer coisa como isto: “Qualquer peça que precise, seja qual for o modelo, preços em conta”. Por detrás desta pacatez, porém, esconde-se uma linhagem familiar tremendamente rufia, plenamente encarnada pelo irmão Freddie – “sobrava-lhe em sorte o que lhe faltava no resto” -, que mostra um cada vez menor jogo de cintura para lidar com esquemas trapaceiros e pouco recomendáveis – ao contrário de Ray, que vai fazendo um bom dinheiro com esquemas laterais e não declarados.
Diplomado em Gestão, Ray sobrevive num mundo onde a condição de se ser negro é uma nódoa no currículo e na vida. À boleia dos esquemas de Freddie, ver-se-à atirado para um lugar do qual não poderá regressar, e do qual fazem parte polícias corruptos, subornos a rodos, esquemas de vingança e crimes apagados com a ajuda da carteira – se esta estiver recheada.
Apesar de conter menos dramatismo que os anteriores romances publicados em Portugal, “Ao Ritmo de Harlem” mantém a contestação política e o olhar histórico de Whitehead, para quem o racismo continua a ser uma presença forte num país que, vai-se a ver, talvez não esteja longe disto: “A América era vasta, infestada de lugares pouco recomendáveis, onde a intolerância e a violência raciais reinavam. Vai visitar familiares na Geórgia? Eis uma lista dos trajectos seguros, que não atravessam as cidades onde os negros estão sujeitos a recolher obrigatório ou os territórios de brancos de onde poderá não sair vivo, as vilas e distritos a serem evitados caso preze a sua vida”.
Numa viagem que atravessa clubes elitistas, um bairro em ebulição, um mistério policial, o apogeu dos movimentos civis, motins e pilhagens, crimes e castigos, o leitor será apresentado a um homem com o desejo de criar família e de subir na vida, adaptando-se aos corredores do poder, a uma lei escorregadia e a uma “cidade que não perdoa”. Uma coisa é certa: o leitor sairá daqui pronto a entrar, como um expert, numa loja finória de mobiliário antigo.
Sem Comentários