Perante o desenrolar causa/efeito que é lido, há previsões certeiras na direcção para onde Kingsley Amis nos leva n’ “O Homem Verde” (Quetzal, 2014), não no sentido de previsibilidade enfadonha, mas sim em função de um determinismo na sua estrutura de acção dramática, base devidamente estudada. A perfeição do encaixe das peças é criativa e com espaço para ambiguidade, à maneira dos melhores desenlaces. Chamem-lhe fórmula, mas uns usam-na melhor que outros e, assim sendo, agrada-se a gregos e troianos.
Se aquilo a que nos habituamos a chamar humor britânico incide muitas vezes sobre a chico-espertice, é segura a aposta da contracapa em comparar Maurice Allington, o narrador que gere uma estalagem, a Basil de Faulty Towers. As vozes poder-se-ão confundir, certo, mas o romance de Amis é de maior penumbra, um relato de alcoolismo, sexo e traição, delirium tremens e ocultismo. Allington é o exímio personagem “fuck up”, sendo que as suas acções parecem ser indissociáveis de escolhas inconsequentes e infortúnios de vida, como a morte do pai. Transfere os seus problemas íntimos para uma assombração, o espectro de Thomas Underhill, que Amis introduz de modo a tornar “O Homem Verde” numa trama fantasmagórica de género. Um passo genial, pois subverte os convencionalismos literários estipulados: compreendemos que Allington crê no fantasma de Underhill, enquanto as razões pelas quais está convicto que o vê tem indícios nítidos de um deteriorar da sua saúde mental.
Os valores morais – ou a falta deles – são postos em primeiro plano, no que toca às atitudes irreflectidas do personagem, quando, por exemplo, Allington vai relegando o convívio com a filha adolescente para o dia seguinte, ou quando a busca pelos mistérios do fantasma de Underhill começa a envolver terceiros, entre eles a amante, a quem propõe apimentar a vida (extra e) conjugal através de um ménage à trois com a esposa. Amis esboça o perfil psicológico do narrador à semelhança de uma vertigem à beira de um abismo. Os mistérios da alma penada são, no fundo, reflexo de perturbações bem concretas do mundo terreno. A pergunta que poderá colocar é: mas isto é uma história de fantasmas? Se for como dita a regra, nem por sombras. É, antes, uma história sobre demónios interiores, dados a vícios e a escolhas amorais que causam atritos entre pessoas do mesmo círculo. O ritmo literário do autor mede estes problemas a passo de avalanche, de forma gradual, porém rápida, até se tornar incomensurável.
É sabido que a maneira de contar histórias através de uma sequência de actos com consequências é aclamada universalmente como o modelo a seguir para obter um romance de sucesso. Já o panteão de obras incontornáveis que seguem tal padrão é restrito, ao contrário do corpo maciço de aspirantes. Habituámo-nos à qualidade das obras sobre as quais recai o prémio Man Booker. “O Homem Verde”, nesse rol de vencedores, é um exemplo primoroso de storytelling e quintessência britânica. Essencial.
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