Em 1937, Ernest Hemingway (1899-1961) publicou o seu quarto romance, “Ter e não Ter” (Livros do Brasil, 2022). Como nome magno, Ernest Hemingway trouxe para a literatura o estilo sintético do jornalismo, principalmente em obras que reflectem sua experiência pessoal.
Em “Ter e não Ter”, que tem como pano de fundo a região de Key West (Flórida), onde o autor residiu, a poucas milhas marítimas de Cuba, o relato fala-nos de vidas passadas entre os Estados Unidos da América e Cuba, de pescadores profissionais em crise, gente endinheirada adepta da pesca oceânica, contrabandistas, imigrantes, clandestinos, bêbados e arruaceiros que frequentam os bares à beira do cais, prostitutas e revolucionários cubanos. Em cada um, percebe-se a presença de desequilíbrios e esquemas de sobrevivência propícios a cenários de risco.
“Ter e não Ter” é a história dramática de Harry Morgan, natural de Key West, e da sua luta para ganhar a vida e sustentar a família. Dono e piloto de um barco de aluguer para expedições de pesca, Harry vê-se obrigado, durante o período da Depressão dos anos 30, a transportar todo o tipo de cargas ilegais, incluindo bebidas alcoólicas e criminosos cubanos, entre Cuba e a costa americana. As suas aventuras intercalam com episódios sobre as vidas dissolutas de uma série de outras personagens, quase sempre reveladoras de caminhos para a ruína, frutos da especulação.
Ao melhor estilo de Hemingway, os ingredientes estão reunidos para um verdadeiro coquetel de emoções – o desfecho de auto-destruição pela bebida e outros vícios, fugas diversas para lidar com o remorso e, por fim, o suicídio, praticado de forma explícita ou dissimulada, em pequenas e sucessivas doses de más decisões e de fugas para a frente.
A primeira cena narrada é desde logo aprisionante, pela exposição simples e certeira de Hemingway. Queremos saber exactamente o que se seguiu à cena de pesca e à frustração do resultado. Queremos também conhecer como sai o protagonista do dilema entre a falta de dinheiro e de perspectivas e a certeza de se meter em problemas, caso entre nos esquemas de sobrevivência arriscados que sabia à sua espera. Mais à frente, já apanhado pela crise da pesca desportiva, Harry passa a dedicar-se ao contrabando de álcool entre os EUA e Cuba. Depois de viver a levar gente rica a pescar, precisa agora de tomar decisões que lhe permitam ponderar os ganhos da participação em esquemas menos lícitos, decisões que pondera compatibilizando os valores em que acredita e a necessidade de sobrevivência da família de mulher e três filhas.
No final, percebe-se que Harry Morgan teve uma vida inteira para aprender uma lição: a de que um homem sozinho não tem qualquer hipótese, mesmo fazendo uso de competência profissional, audácia e ânsia de liberdade. Como ser solitário, durão e realista, que enfrentava bons e maus momentos com a mesma tranquilidade auto-confiante, compreende também que um homem solitário está destinado a cair.
Embora dos menos conhecidos e nomeados, “Ter e não Ter” é um romance de grande envergadura e um dos livros mais reveladores da personalidade do autor.
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