É um dos livros mais estranhos, singulares e originais que chegaram às livrarias neste ano de 2022: “Sobre Isto Ninguém Fala” (Bertrand Editora, 2022), assinado por Patricia Lockwood, foi o vencedor do Dylan Thomas Prize, tendo sido finalista, entre outros, do Booker Prize.
No centro deste livro está a Internet – neste caso o Portal – e o scroll infinito, o mergulho num lugar estranho e aditivo onde a privacidade se vê revirada do avesso: “Porque parecia o Portal um lugar tão privado, se nele só se entrava quando se precisava de estar em toda a parte?”.
A protagonista, que vamos conhecendo através de migalhas que vão sendo espalhadas pelo caminho, anda na psicoterapia, é casada, tem um gato a que deu o nome de Dr. Ânus e tem um prazer secreto pelas frases incompreensíveis, aquelas “que só 0,5% das pessoas à face da Terra compreenderiam”. Coisas como “sexo na lua no próximo verão”, “o que significa filho da curta” ou “queimei as calças, feri a perna”. Percebe-se que ganhou notoriedade no mundo virtual pelos seus posts e por ter viajado pelo mundo ao encontro de fãs mais apaixonados, mas que a certa altura algo mudou.
Ao longo deste curto romance, onde vamos passando as páginas como se navegássemos num feed interminável, encontramos muitos dos tópicos das discussões actuais, ainda que a autora os apresente longe de uma escrita banal: o desaparecimento do “eu”, a cultura do cancelamento, os protestos de sofá, as alterações climáticas, o aproveitamento extremo, os reality shows, a banalização do mal e da violência, a crença numa Terra Plana, o vazio de um dia sem assunto para esquartejar: “Num dia parco em notícias, detínhamo-nos suspensos em ganchos de açougue, baloiçando sobre o abismo”.
A surpresa, porém, está guardada para a segunda metade do livro, quando mergulhamos na política americana, então conduzida pelo “ditador”, à boleia da gravidez da irmã e das severas políticas anti-aborto – aqui no estado do Ohio –, impostas (sempre) pelo patriarcado mesmo quando no horizonte se avistam grandes complicações. Irmã que surge apresentada com muito humor por Lockwood, numa comparação entre diferentes gerações com muita graça: “A diferença entre ela e a irmã podia ser atribuída ao facto de ter atingido a maioridade nos anos 1990, no auge das camisas de xadrez e da heroína, ao passo que a irmã atingira a maioridade na década de 2000, no auge das cuecas de fio dental e da cocaína”.
Ao mergulhar de cabeça no efémero Portal que a todos comanda, Patrick Lockwood contruiu um romance que se desdobra entre o virtual e as cartilagens, tudo para mostrar que a dor, seja ela a de um coração partido ou o negrume da perda, é algo sem a qual a condição humana não pode ser experienciada. E tudo com muita filosofia e humor à mistura, num primeiro romance que não está longe de ser um pequeno prodígio.
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