Todos os leitores que têm hoje entre dezoito e cento e oito anos, mais coisa menos coisa, lembram-se certamente do dia em que, de repente, tiveram de abdicar do frenesim imparável da adolescência para, durante umas valentes horas, se dedicarem a ler um livro que tinha tudo para ser uma maçada, sobretudo para quem a ideia de leitura estaria algures entre a edição de A Bola de sábado e os quadradinhos de Patinhas, Zé Carioca e companhia. Atente-se só ao primeiro parágrafo de “Os Maias” (Guerra & Paz, 2015), agora reeditado de acordo com a 1ª edição (1888) e com uma capa que é um verdadeiro mimo:
“A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e uma cruz no topo assemelhar-se-ia a um colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha decerto de um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do escudo de armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números de uma data.”
É assim, aparentemente, o mundo de Eça de Queiroz, feito de descrições detalhadas, pormenores vistos ao microscópio e uma visão fotográfica do lado mais visível da realidade. Porém, aqueles que aguentarem o espírito de cronista do detalhe que impera nas primeiras dezenas de páginas, cedo se deixarão encantar por um livro que, diga-se sem qualquer pudor, está entre aquilo que de melhor a Literatura ofereceu ao mundo.
A história atravessa a família Maia ao longo de três gerações, centrando-se no momento da narrativa na figura de Carlos da Maia, entregue muito cedo ao seu avô depois de o pai se ter suicidado por motivos de amor maior. É Carlos que, crescido sob a alçada de uma educação inglesa, forte e austera, vai recuperar o esquecido Ramalhete, após ter conseguido conjugar o curso de Medicina com um doutoramento vida boémia. Com consultório aberto e um monte de projectos dos quais raramente algum será cumprido, dedica-se às mulheres, aos amigos e a grandes aventuras, até que conhece Maria Eduarda, por quem se apaixona loucamente. Paixão essa que sustenta o lado romântico do livro, mas que é apenas uma das múltiplas facetas e olhares que Eça de Queiroz nos oferece.
Em “Os Maias” está retratado o Portugal de ontem mas também o de hoje, feito das assimetrias entre a província e a capital, de sonhos medíocres, de uma imensa falta de imaginação e engenho. Um país que Eça apresenta como uma brilhante caricatura, fazendo-nos olhar, pensar e desfrutar da pátria portuguesa, lugar onde o amor e a raiva, o sentimento de pertença e a vontade de exílio, andam muitas vezes – demasiadas? – de mão dada. Leiam-no, releiam-no, mergulhem nestas páginas encantatórias. Mora aqui um dos grandes romances da história.
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