“Um mundo sombrio e governado por feitos sombrios, que nos arrastam por um rio de espuma branca a que não podemos resistir”. Assim é caracterizada Vigrið, a “terra dos reinos despedaçados”, onde decorre a acção de “A Sombra dos Deuses” (Asa, 2022), o primeiro volume da Saga dos Jurados de Sangue, uma fantasia épica de John Gwynne.
A inspiração na mitologia nórdica é evidente e assumida. Evocando o Ragnarök, é no território de Vigrið que o autor situa “a Planície da Batalha”, onde deuses dominados por rivalidades e desejos de vingança lutaram entre si e morreram, desencadeando um cataclismo: “o mundo desmoronou, reinos inteiros foram destruídos, lançados pelos ares, engolidos pelos mares”, ao mesmo tempo que foram libertadas as criaturas do mundo inferior, genericamente designadas por vaesen.
O novo mundo, nascido dos escombros do antigo, odeia a memória destes deuses e escraviza aqueles que, pelos dons que possuem, são considerados seus descendentes. É um mundo de ferro e sangue, percorrido por bandos de mercenários, onde as terras livres vão sendo obrigadas a submeter-se à autoridade de homens e mulheres ávidos de riqueza e poder. Há códigos de honra rígidos, feitiçaria, vaesen com diferentes graus de domesticidade, promessas de tesouros a serem encontrados e batalhas onde os bravos ambicionam conquistar uma fama que perdure em canções.
A narrativa desenvolve-se a partir de três personagens centrais: uma mulher atormentada por um passado violento, a quem destroem o lar construído com muito esforço, e que parte numa demanda sangrenta para recuperar o filho que lhe raptaram; um servo fugido, que adere ao bando de mercenários conhecidos como Jurados de Sangue, impelido pelo desejo de esclarecer e vingar a morte da irmã; e uma jovem de sangue nobre, que troca uma gaiola dourada pela oportunidade de ser senhora do seu destino, escolhendo uma nova família que irá deparar-se com o maior segredo de toda a Vigrið, e penetrando com ela no domínio das lendas.
O autor revela uma magnífica capacidade de recriação de ambientes ricos em detalhes, enquanto nos conduz pela natureza agreste das terras montanhosas, por fiordes, ilhas vulcânicas, abismos onde fluem torrentes de lava que aquecem o solo das redondezas, entrepostos portuários fervilhantes de actividade, vilas fedorentas e fortalezas edificadas por cima ou por baixo de ossos colossais de criaturas há muito desaparecidas.
A paixão pela História – bem como o facto de fazer parte de um grupo de reconstituição viking – transparece nas descrições pormenorizadas de comida, vestuário, armamento e técnicas de combate. O peso crescente que o sobrenatural vai adquirindo ao longo da intriga poderá desagradar aos leitores que preferem uma fantasia mais ancorada na realidade, mas tem todos os elementos necessários para fazer as delícias daqueles que não dispensam uma boa dose de magia. Os três eixos narrativos atraem-nos para os protagonistas de tal maneira que ficamos a ansiar pelo conhecimento do seu destino, depois de um final que já esboça pontos de contacto entre eles, num momento em que a sombra dos deuses volta a pairar sobre Vigrið.
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