Um retrato pungente do abandono a que se encontra votado o interior de Portugal, um relato engajado da luta de um homem pela defesa daquilo que ama. É assim que, muito sinteticamente, podemos resumir “Baiôa Sem Data Para Morrer” (Porto Editora, 2022), o primeiro romance de Rui Couceiro, que nos transporta para um “pequeno povoado sem história nem tradição, que dá pelo bonito nome de Gorda-e-Feia“.
A esta pobre e minúscula aldeia alentejana, “um amontoado de branco e telhas escurecidas que nunca interessaram a romancistas ou poetas“, perdida numa planície vasta e seca, chega em 2015 um professor de 30 e poucos anos sem vínculo a nenhuma escola. Em plena crise existencial, viciado no telemóvel e nas redes sociais, aproveita a notícia da reabilitação da casa dos antepassados para lá se instalar durante uns meses, esperando alcançar nessa terra “esquecida pelo ritmo do mundo” a quietude que lhe falta, mas aquilo que encontra ultrapassa todas as suas expectativas.
No cerne da sua experiência está a figura peculiar de Joaquim Baiôa, que assumiu a missão de reabilitar as casas vazias devido à morte ou ao abandono dos proprietários, de maneira a atrair novos residentes. De um escombro, reergue “uma hipótese de futuro com o mínimo de dignidade” para quem quiser aproveitá-la. “Além de recuperar as casas, Baiôa mantinha as ruas limpas e os canteiros com flores. Desde há muito que ajudava as viúvas, substituindo-lhes as lâmpadas fundidas, consertando torneiras ou autoclismos que pingavam, e ainda levando os mais velhos entre os velhos ao posto de saúde, ou ao hospital […] Ofereceu os anos de reforma aos seus e ao lugar onde nasceu. Preocupava-o o envelhecimento da população e sabia de cor os índices de envelhecimento, ano por ano, desde 2000.”
A chegada do narrador dá a Baiôa esperança de que o seu esforço não seja em vão e, ao ver o homem mais novo aderir à luta, partilha com ele o peso de um segredo que o faz correr contra o tempo, enquanto a morte vai ceifando os poucos velhos que restam à sua volta.
Tentado resistir tanto à “melancolia neorrealista” como ao “deslumbre de turista“, sentido-se frequentemente um espectador numa peça de teatro, o recém-chegado vai desvendado as histórias mais ou menos bizarras dos aldeões, oferecendo-nos crónicas espirituosas, por vezes irónicas, mas sempre cheias de carinho por aquela gente que o surpreende.
Apesar da crítica à velocidade da vida moderna, não assistimos aqui a uma diabolização dos telemóveis e das redes sociais. Aliás, é por elas que a mãe do narrador é informada do restauro da antiga casa da família. Até em Gorda-e-Feia a internet proporciona uma ligação útil ao resto do mundo, permitindo comunicar com familiares distantes, aceder a informação e fazer compras, pelo que as constantes dificuldades de acesso fazem os utilizadores sentirem-se cidadãos de segunda.
Neste mundo repleto de personagens caracterizadas com amor, a desertificação e a morte de um estilo de vida são ameaças constantes. Combatê-las pode ser inútil mas, com diz Baiôa, é belo – tal como este livro, acrescentamos nós.
Sem Comentários