“Era tudo o que eu podia fazer, tudo o que conseguia fazer há anos: focar-me em sobreviver à semana, ao dia, à próxima hora”. Bem-vindos à inabalável rotina de Feyre, uma caçadora de 19 anos com bagagem para sustentar uma família inteira, que inclui tarefas como caçar e desmantelar as carcaças dos animais para o melhor dos aproveitamentos. O pai desistiu de viver há muito, após ter perdido quase tudo e de se tornar, perante todos, um rosto do falhanço. Quanto às irmãs, digamos que não são lá muito dadas à participação: Elaine, “simplesmente… não entendia o que se passava”; e, quanto a Nesta, foi “quem mais sofrera com a perda da nossa fortuna”.
Após uma série de anos – quinhentos, mais coisa menos coisa – a serem escravizados pelas fadas, os humanos lá conseguiram a sua libertação. Ainda assim, existem “tolos fanáticos que ainda veneravam as Fadas Supremas”, esquecendo o que dizem os manuais de história – ou, pelo menos, o que vai passado de boca em boca: “Houve uma altura, há muitos milénios, em que éramos escravos das Fadas Supremas. Uma época em que construímos para elas gloriosas e extensas civilizações, com o nosso sangue e suor, erguemos templos para os seus deuses selvagens. Houve uma altura em que nos revoltámos em todas as terras e territórios. A guerra foi tão sangrenta, tão destrutiva, que foi preciso que seis rainhas mortais arquitectassem um tratado para pôr fim ao massacre dos dois lados e para que a muralha fosse construída: o norte do nosso mundo foi cedido às Fadas Supremas e às fadas, que levaram a sua magia com elas; o sul ficou para nós, mortais cobardes, eternamente forçados a tirar o sustento da terra”. A verdade é que este cenário de paz parece estar por um fio, mesmo que ninguém arrisque dizer ao certo o que se está a conspirar do outro lado do muro.
A vida de Feyre irá mudar quando, na floresta, mata uma Fada Suprema, que julgava ser um lobo. O que fará com que tenha de aceitar uma forma de reparação junto de uma criatura monstruosa, que surge a exigir vingança: deixar a sua família e ir viver para uma terra que só conhece das lendas, muito dada à magia e à traição, onde irá partilhar casa com Tamlin, o Grande Senhor da Corte da Primavera. Aquilo que parecia ser uma prisão acabará, porém, por se revelar um encontro com o seu eu mais profundo, mas também com um mundo que, afinal, não é bem o que parece, definhando (não tão) lentamente com uma praga que obriga ao uso de máscaras que são uma verdadeira prisão.
Se ficarem de nariz torcido quando lerem, na contracapa de “Corte de Espinhos e Rosas” (Marcador, 2022), promessas de um romance tórrido ou momentos sexy, não se deixem enganar. O romance está lá, é certo, mas o universo criado por Sarah J. Maas é fascinante, habitado por personagens muito bem desenhadas, numa trama que é como um jogo de adivinhação mantido em ponto de rebuçado até final. Se gostam de fantasia, este princípio de trilogia é livro para deitarem a mão.
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