Depois de um primeiro fim de semana em São Miguel, o Arquipélago de Escritores instala-se agora na Terceira, para uma segunda parte onde a música vai estar em alta – sobretudo com os aguardados concertos nos norte-americanos The Wants (uma estreia em Portugal) e de Os Perdedores (o novo projecto musical de Manuel Fúria).
A Casa do Sal (Angra do Heroísmo), lugar com vista para o horizonte e de frente para o Monte Brasil, sala onde as traves que sustentam o tecto pertenceram a barcos que não mais navegam, recebeu uma conversa sobre a Geografia do Lugar, onde participaram os poeta André Tecedeiro e prosdor ficcionist Maria Brandão. Uma conversa conduzida por Sara Leal que, a partir do mote “o tempo está associado ao lugar”, desafiou ambos a uma incursão entre a dicotomia fora/dentro, e que acabou por se transformar numa animada tertúlia literária com diversas intervenções do público – isto após uma boa provocação de Nuno Costa Santos, sobre o não nomeação do lugar como um sinal de não comprometimento dos escritores ou mesmo de uma nova tendência literária.
Para André Tecedeiro, poeta que tem publicada na Porto Editora a antologia “A axila de Egon Schiele”, tudo tem a ver “com a pertença a um espaço”, falando do Alentejo como uma espécie de ilha onde cresceu. Sobre o acto da escrita, referiu que “a poesia precisa de reconhecimento, de estarmos atentos aos sentidos, às sensações e ao pensamento. Exige disponibilidade. Mas também ha um lado de expansão em escrever textos pedidos”, sobretudo quando são estes que pagam as contas. André falou da origem como “o lugar de onde parte a arte. Um lugar que não pode ser fingido. O lugar onde somos mais reais” e que constituirá, afinal, essa “ilha emocional” de cada um.
Nascida em Ponta Delgada, Maria Brandão começou por dizer que, em relação a uma geografia pessoal do lugar, “a chave está dentro de nós, não precisa de ser um lugar físico. A ilha acontece em qualquer espaço”. O estar insulado, algo que lhe é inescapável, não é algo que possa ser apaziguado pela imagem, pintada por Sara Leal, da ilha a estender-se até ao horizonte como capaz de sarar. “A memória também é uma ilha”, disse, relacionando esse sentimento de aperto com o poema de José Martins Garcia que tem como primeira quadra estes versos:
o sofrimento está dentro da ilha
o sofrimento é da ilha
a ilha está no fundo dum poço
no fundo dum poço sofre uma ilha
Na tertúlia que se seguiu, discutiu-se a reivindicação de uma literatura que pertença ao lugar, do comprometimento ou não à geografia de cada um, de um espaço físico que talvez se traduza, afinal, na relação entre escritor e leitor, ou do lugar como uma personagem literária de pleno direito.
Foi também na Casa do Sal que se viveu, com a condução de Pedro Santos, um Romance com a Música, conversa que contou com a participação de Madison Velding-VanDam (The Wants), Manuel Fúria (Os Perdedores) e Cláudia Cardoso (Directora da Biblioteca Pública e Arquivo Regional Luís da Silva Ribeiro). O desafio colocado, ao estilo de um quando o telefone toca em versão revista e aumentada – como o cantou Rui Reininho -, foi o de escolherem dois livros e dois discos marcantes em momentos distintos da linha temporal: juventude e actualidade.
Madison, que assumiu ter sido um filho da mãe em alguns momentos da sua vida, escolheu como livro formador “Autobiography of Malcolm X”. Um livro escrito por Malcolm X e Alex Haley, lançado em 1965 nos Estados Unidos logo após a morte de Malcom X. Para Madison, que considera que Malcom empreendeu uma jornada próxima de Ícaro – “Faz parte da juventude tomar riscos, viajar perto do sol.” – este arranjou forma de aceitar e de se reconciliar com a sua escuridão e demónios interiores, algo que transporta para a escrita das suas próprias canções.
Para os tempos mais recentes, a escolha de Madison recaiu em “Lapvona: A Novel”, de Ottessa Moshfegh, que lhe fez recordar de certa forma o seu percurso pessoal de (quase) redenção. Um livro que não recolheu críticas por aí além, muito provavelmente por nele encontrarmos referência várias a fezes ou personagens que substituíam os seus olhos. Aqui, Madison faz um paralelismo com o cinema de John Waters, que “trouxe o vil e o desconfortável para a comédia. Gosto de artistas que se debruçam sobre o lado vil, um pouco como o movimento Dogma 95. Gosto de rir e chorar ao mesmo tempo”. Para Madison, esse acto de olhar a escuridão interior passa por “conhecer os demónios e transformá-los em matéria que seja comunicável e até divertida para os outros”. Dá como exemplo “Nuclear Party”, tema do longa-duração de estreia dos The Wants, em que alguém descobre os códigos nucleares e se diverte, um pouco como no filme Dr. Strangelove, com a possibilidade de acabar com o mundo. Há também uma referência a Fernando Pessoa e à “inovação dos heterónimos”, mostrando-se abismado com o facto de ter estudado filosofia e de nunca ter descoberto Pessoa. “Na escrita de canções, tento também imaginar vários outros e colocar-me no seu lugar”.
Como símbolo literário da juventude, Cláudia Cardoso Escolheu “Mau Tempo no Canal”, de Vitorino Nemésio, “uma história açoriana que diz muito sobre nós, um retrato de uma sociedade fechada e condicionada”. Foi aí que descobriu Margarida, “uma das mais fascinantes personagens femininas da literatura portuguesa, grande demais para os seus amores frustrados. Foi a primeira vez que me apaixonei por uma mulher”. Para a idade adulta a preferência – uma que poderia ser outra – vai para “A Amiga Genial”, de Elena Ferrante, novamente pela construção da personagem feminina mas, sobretudo, por ser um livro que se debruça sobre “a relevância da mentira”.
Manuel Fúria escolheu “Crime e Castigo” de Dostoiévski, que considera ter várias pontes com este trabalho de Os Perdedores. Assim como “O Lobo das Estepes”, de Herman Hesse, nomeadamente “a figura do herói romântico solitário, obcecado consigo próprio. Uma ideia que tinha a ver comigo, com o meu lado autocentrado e vaidoso”. Fala ainda de Os Cadernos do Subterrâneo”, também de Dostoiévski, qualquer coisa como “O Lobo das Estepes em versão para adultos”. Regressando a “Crime e Castigo”, diz ter sido “o primeiro livro que me falou de redenção de uma maneira que nunca tinha compreendido antes. Uma catequese cristã, uma porta de entrada para uma conversão mais adulta. Ele olhava o castigo não como uma prisão mas como uma redenção”. Recusa, na escrita de canções, a vaidade que poderá estar ou não fora delas. “A minha vaidade tento combatê-la quando começa a deixar de ser saudável. As canções não têm a ver com auto-centramento, antes com um labor artístico, com a minha visão e aquilo que posso oferecer. Com a voz que eu tenho. Tenho a capacidade de transformar as minhas experiências em canções, por vezes de forma algo desconfortável. Por vezes não sei se é bom ou mau o que estou a fazer, é demasiado explícito”.
Para uma fase mais adulta, a escolha foi “O Homem Eterno”, de G.K. Chesterton, não pela novidade mas por “identificar algo já sentido mas que passou a ter um nome e uma existência. A ideia chave de que entre nós, agora, e o primeiro homem, não há diferença nenhuma. Não há evolução. Existe apenas o momento em que o homem passou a ser homem. E, nesse sentido, não há tempo. As mesmas dores e felicidades são as mesmas. Por isso e que Shakespeare continua a ser actual, porque o tempo não existe nos seus livros”.
A segunda parte da conversa foi sobre discos marcantes. Madison optou por “Different Trains”, de Steve Reich, que foi ao encontro de “explorar o que a música podia ser, com os ritmos e os padrões da natureza. Os seus avanços intelectuais marcaram-me apesar de não ser do território clássico”. Avançando para os dias de hoje, mencionou a banda sonora desenhada para a série televisiva “Chernobyl”, onde a partir de ferramentas modernas de manipulação se conseguiu olhar para “coisas que nos assustam e fazer algo de belo com elas”.
“Transversal do Tempo”, de Elis Regina, marcou a juventude de Cláudia Cardoso, disco aqui escolhido “pelo momento que o Brasil vive hoje”. Ouve-se a canção “Saudável Maloca”, que lhe lembra “a adolescência e uma altura em que não havia silêncio”. Para a idade adulta a escolha foi para Tania Maria e “Come with me”, cantora brasileira que “tocou num festival de jazz na Praia da Vitória, e isto antes do Angra Jazz”.
O álbum de juventude de Manuel Fúria foi “Heaven or Las Vegas”, dos Cocteau Twins, “a pior banda para trazer para um festival literário” pela razão de as suas letras estarem ao nível de um mito. “Cresci a ouvir a música dos meus irmãos, para além daquilo que eu queria ouvir. Tive uma fase em que a minha irmã me levava a concertos, e vi os Cocteau Twins no coliseu do porto quando tinha 12 anos.” Uma referência que poderá ser descoberta em “Católico Menino Manco”, faixa de Os Perdedores. Por falar em perdedor, o disco escolhido para a idade adulta foi “Benji”, de Sun Kil Moon, projecto de Mark Kozelek, mentor de uma banda chamada Red House Painters, que acompanha Fúria desde os 14 anos. “A única vez em que roubei alguma coisa foi um livro de letras dos Red House Painters, e ainda tive a lata de lhe ir pedir um autógrafo depois disso”. Madison aproveita para elogiar Kozelec e o chamar de “gigantic asshole”, ao que Manuel Fúria responde ter sido precisamente essa uma das razões – o cancelamento de Kozelek após uma série de acusações de abusos sexuais – para escolher este disco, colocando Kozelec na sua extensa galeria de Perdedores. “Um disco onde se fala sem filtro, e que se torna cada vez mais difícil à medida que mais o ouvimos”.
Fotos: Luísa Velez.
1 Commentário
Muito cool o evento e a reportagem