Estão a ver o Quaresma, aquele que, dentro das quatro linhas, conquistou a alcunha de rei das trivelas? Pois bem, parece que em tempos antigos existiu um outro Quaresma na área e perto dela, trazido para a convocatória pelo Mister Fernando Pessoa.
Com edição de Ana Maria Freitas, “Quaresma, Decifrador: As Novelas Policiárias” (Assírio & Alvim, 2014 – 2ª edição) apresenta, pela primeira vez, a reconstituição do conjunto das novelas policiárias de Fernando Pessoa, a que o próprio deu o título de Quaresma, Decifrador. Uma escrita que se prolongou durante décadas e que, em 1935, o ano da morte do poeta, ainda continuava, mesmo que nenhuma das novelas não tivesse ficado completa – “estou escrevendo” era o lema de Pessoa, como o foi referindo em várias cartas.
“Quaresma Decifrador foi pensado e desenvolvido como um conjunto centrado no decifrador e raciocinador infalível Abílio Fernandes Quaresma, uma figura que ultrapassa o molde da simples personagem e ocupa um lugar na realidade ficcionada do universo pessoano”, avança Ana Maria Freitas na introdução a esta edição.
A ideia de Pessoa era publicá-los como livros separados e em diferentes tamanhos, com preços convidativos ao leitor. À semelhança de outros projectos pessoanos, este foi alvo de inúmeros esquemas e reformulações. Como curiosidade, refira-se que Pessoa chegou mesmo a projectar uma novela com o título Shakespeare, onde Abílio Quaresma trataria de investigar a verdadeira identidade do bardo, que alguns diziam estar ligada a Francis Bacon. Narrativas que, após a morte do autor, ficaram caídas no esquecimento, soterradas em camadas e camadas de poesia.
Ana Maria Freitas destaca o afecto de Pessoa relativamente ao género policial, um sub-género narrativo que lhe permitia o escape e a diversão, juntando um texto do próprio onde esse amor está declarado: “Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto por do melhor do ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur Morrison me pega na consciência ao colo”.
Para além de um grande leitor, Pessoa dedicou também algum tempo à teoria, escrevendo um ensaio intitulado Detective Story, iniciado em 1905 mas nunca completado, onde o plano seria falar de Poe, Conan Doyle e outros.
Algures na introdução, Ana Maria Freitas apresenta-nos Quaresma como “sonhador, fechado num alcoolismo impenitente e num raciocínio automatizado”, sendo “uma das personagens mais fascinantes de Pessoa, desenvolvida de forma exaustiva, como se conclui dos textos e das versões alternativas em que a sua descrição é trabalhada”. Quanto a esta edição, refere que foi necessário refazer o curso da imaginação do autor, pois, de outro modo, seria impossível reconstruir aquilo que o ódio às coisas acabadas, mencionado em epígrafe, e a dispersão causada pela interferência alheia, separara. “Estas ficções aparentemente simples vêm revelar-nos mais um universo pessoano, uma Lisboa paralela àquela onde Bernardo Soares e Pessoa vagueavam, e por onde Abílio Fernandes Quaresma agora nos conduz. Merecem sair do esquecimento e chegar aos seus leitores”.
Quanto a Pessoa, no texto que surge aqui em jeito de prefácio, trata de fazer a sua própria homenagem a Qauresma, num epitáfio para o obituário do jornal: “Tal era, como eu o vi e conheci, Abílio Fernandes Quaresma, médico sem clínica e decifrador de charadas, nascido em Tancos em 1865 e falecido em Lisboa neste ano, em que estamos, de 1930”. Deliciem-se com estas trivelas pessoanas.
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