Há um ano atrás, embalados pela subida dos muitos (de)graus de uma cerveja literária chamada Cadáver Esquisito, estivemos à conversa com João Paulo Cotrim, fundador da Abysmo, esmerado editor e bom bebedor – e autor de um dos seis contos que faziam parte desta aventura, que cruzava o álcool e a literatura e ainda arranjava espaço para um saco, um livro e uma longa-metragem. Um ano depois, já sem o mestre Cotrim no comando da embarcação Abysmo, o FOLIO prestou homenagem ao vasto legado Cotriniano, com a abertura da Casa Abysmo que, até dia 16 de Outubro – o dia de encerramento de uma edição dedicada ao Poder -, apresentará uma série de iniciativas, entre conversas, lançamentos de livros, concertos, festas e, claro, muita cerveja – ainda que, como referiu José Anjos, não haja aqui qualquer descriminação de outras bebidas alcoólicas.
O pontapé de saída foi dado com a inauguração de uma exposição de Mantraste – que assina como Bruno Reis Santos no BI ou CC -, intitulada “Uma espécie de livro”, que, segundo reza a folha de sala, é “uma exposição de desenho em formato editorial sobre o que a terra nos dá”, e que terá partido de um convite de Cotrim a Mantraste para a publicação de um livro, que não aconteceu mas poderá ainda acontecer. “Ele gostava dos meus erros, que com o passar do tempo se tornaram qualidades”.
Nesta exposição, marcada pela intensidade de ter sido feita de uma ponta à outra no mês de Setembro, Mantraste seguiu à risca os ensinamentos do mestre Feliciano Agostinho, que lhe mostrou o longo caminho a percorrer até assentar pé no patamar reservado aos mestres oleiros: fazer tudo, desde trabalhar e amassar o barro, produzir as cerâmicas e, no caso de Mantraste, montar a própria exposição. “Trabalhar o barro foi quase como trabalhar a terra. Mais uma metáfora”. Metáforas essas não faltaram, assim como o assumir de uma “mentalidade de pobre, o que me faz gostar de sofrimento. Nasci numa família de agricultores, gosto de pedir desculpa. Esta exposição foi quase um processo terapêutico”. Uma exposição que inaugura com o painel de um abraço a receber quem chega, ilustrando de forma triunfal aquilo a que Mantraste chamaria de marca Cotriniana: “A curadoria da amizade. Saber chamar irmão aos outros”. E que, com um sentido de humor que João Paulo Cotrim iria certamente gostar, termina com um quadro que põe termo a um ano de homenagens: “Deixem o João em Paz.”
A tarde prosseguiu ao sabor das metáforas, numa mesa intitulada “A terra dá-nos metáforas” que, com a condução de Nuno Miguel Guedes, juntou Bruno Santos (Mantraste), Jacinto Carneiro, Bernardo Trindade, José Pinho, Susana Santos, João Soares, Henrique Bento Fialho e Duarte Azinheira, pertencentes, de alguma forma, à terra da Abysmo, e que levou José Anjos a citar uma peça da exposição para um melhor enquadramento: “Esta terra não nos pertence, somos nós que pertencemos a ela”. Ou, falando de um legado que irá continuar sem perigo de orfandade e citando Cesarinny: “Quando caminhamos para o futuro é o passado que conquistamos”.
À vez, cada um foi falando dos múltiplos sentidos da palavra terra e das suas aventuras com mestre Cotrim. Henrique Bento Fialho, questionado sobre se uma terra pode dar palavras, realçou a ideia permanente de transformação; João Soares falou de “um amigo que me faz falta”; Bernardo Trindade relembrou-nos que a vida é sofrimento, e que o João Paulo conseguia transformá-la num poema; Duarte Azinheira destacou a capacidade de Cotrim juntar pessoas, em projectos incríveis que iam pagando as contas, deixando a Abysmo ser paga com a sua carteira; Jacinto Carneiro recordou Cotrim como “o homem do desassossego permanente”; Susana Santos, indicando o irónico quadro que servia como rectângulo de fundo, disse que era impossível deixar Cotrim em paz, por este fazer “parte da nossa inquietação”, representando “o lugar do amor e do humor”; José Pinho, que disse ter conhecido João Paulo Cotrim numa fase tardia mas muito dinâmica, disse ter descoberto partilhar com ele várias coisas, como o assumir de um “prejuízo suportável” – fazendo um paralelismo entre a sua Ler Devagar e a Abysmo de Cotrim – e usar o humor – muitas vezes acompanhado de uma garrafa de vinho – para resolver todo o tipo de problemas. Foi Pinho que, brincando com alguém ter dito que o Folio era “o Pinho”, falou desta ideia desmiolada que caiu nas boas graças do Município de Óbidos, e que permanece por decifrar. “Ainda não sei bem o que isto é”. Muito provavelmente, o mais desmiolado e excitante festival literário português. A festa prossegue até dia 16 de Outubro.
Fotos: Luísa Velez
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