Muitos foram os escritores que, para criarem os seus detectives ou investigadores, foram beber uns copos valentes à torneira construída por Raymond Chandler que, com a criação de Philip Marlowe, mudou para sempre a história da literatura policial – e, porque não dizê-lo, da própria literatura.
Quando escreveu “À beira do abismo” (Porto Editora, 2014), o seu primeiro romance e aquele que nos introduz a personagem de Philip Marlowe, Chandler andava perto das 51 primaveras, num percurso de vida marcado pelo infortúnio e pela melancolia, algo que ganhou profundos reflexos em Marlowe.
Apesar de “À beira do abismo” conter uma história que misturava os dois mundos policiais de então – leia-se o policial como puzzle à moda de Agatha Christie e a explosão de sexo e violência muito em voga na altura -, Chandler transformou-a num romance erudito, com personagens profundas, dramas reais e, claro está, a presença de Philip Marlowe.
À partida, Philip Marlowe não terá as qualidades que um detective privado deve reunir: é um idealista puro, elegante e extremamente minucioso, que recusa o sistema de corrupção reinante e que, apesar dos muitos avanços que faz em relação ao sexo feminino, não deixa de ser muito puritano e de poucos avanços; tem também um sentido de humor corrosivo, que normalmente lhe traz muitas nódoas negras – muitas das vezes com a autoridade, com a qual convive mal; é alguém que nasceu para combater o mal e a injustiça, apesar de saber, lá bem no fundo, que nunca o conseguirá.
Neste “À beira do abismo” Marlowe vê-se atirado para um mundo habitado pela rica e decadente classe alta de Los Angeles, onde o crime e a corrupção são dominantes. Marlowe é contratado por um velho milionário para investigar um caso de chantagem sobre Carmen Sternwood, uma das suas filhas indomáveis. Ainda que a faceta de Dom Quixote se revele, desde cedo as esperanças românticas de Marlowe se desvanecem, num mundo onde o dinheiro, o sexo e o jogo são demasiado poderosos face a qualquer ideia de lealdade ou honra.
Livro de apresentação do mais incrível detective privado da história – e que ficou (bem) imortalizado no grande ecrã por Humphrey Bogart – “À beira do abismo” é também um triunfo da literatura policial que, muito graças a Raymond Chandler, deixou de ser considerada um género menor. Um verdadeiro marco literário.
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