“Meditar é mijar quando se mija e cagar quando se caga.”
“Yoga”, do francês Emmanuel Carrére (Quetzal, 2022), é um daqueles livros que se lê e se destaca, na avidez de querer reter e reproduzir a forma pragmática e intensa em como são expostos quatro longos anos da sua vida. A intenção fora escrever “um livrinho sorridente e subtil sobre yoga”, mas o resultado acaba por ser a compilação de registos sobre episódios terríveis, como a perda resultante do terrorismo jihadista, a estada em Leros durante a crise dos refugiados, a sua profunda depressão e a inevitável hospitalização.
“Estou certo de que à força de prestar atenção à pele e ao que está debaixo da pele, à inspiração e à expiração, à actividade de bombeamento do coração, à circulação sanguínea, ao fluir dos pensamentos, à força de mergulhar nessa teia infinitamente subtil de sensações, um dia se possa chegar ao outro lado, ao infinitamente grande, infinitamente aberto, ao céu que o homem nasceu para contemplar: é isso, o yoga.”
Em 2015, Carrére, uma das vozes mais originais e populares do panorama literário francês da actualidade, embarcou numa viagem de comboio, em direcção a um retiro de meditação, que será a antecâmara de uma viagem interior. A narrativa é intimista, balanceando a contemporaneidade com as memórias mais intensas, algumas de boa sorte, mas muitas decorrentes de um profundo sofrimento neurótico. O texto é autobiográfico, assente na regra de não mentir e não ficcionar, corajoso, sabendo-se muitas vezes retratado de um ponto de vista pouco lisonjeiro.
“Quando estamos embriagados ou pedrados, e muitas vezes estava ambas as coisas, pensamos que encontrámos uma pepita de ouro e só depois percebemos que é uma caganita de cabra.”
Através do retiro e de outras práticas de apaziguamento interior, Carrére teve como propósito domar a mente, a qual apresenta como poderosa, capaz de realizar grandes feitos, mas também selvagem e impulsiva. Muitas vezes escreveu para domar os pensamentos, encarando a escrita também como uma forma de meditação, de luta heroica pela capacidade de continuar a amar a vida. Ciente de que o mal que o afligia não teria cura – a bipolaridade -, concentra-se em descrevê-lo, encarando a sua produção literária de um ponto de vista clínico, à luz da fase em que se encontrava quando a produziu, revisitando os pensamentos tantas vezes erráticos, desconexos e estridentes que lhe estiveram na base.
Estamos perante uma escrita narcísica, que o próprio reconhece como tal quando assume escrever o que lhe vem à cabeça, sem hipocrisia, desnudando a realidade – a sua e a dos que na mesma coexistem, facto que lhe tem granjeado dissabores pela exposição (in)voluntária de terceiros, especialmente os que lhe são próximos. Fá-lo num registo de sobrevivência, de procura de serenidade, de acolhimento e de transformação de todo o tipo de pensamentos, especialmente os não desejados.
Não sendo um livro de autoajuda “Yoga” é, ainda assim, um livro que qualquer leitor agradece, pela generosidade da partilha e pela intensidade das emoções relatadas. Mesmo quem nunca teve de conviver com a sintomatologia da perturbação bipolar, ficará sensibilizado com crises de depressão e mania/hipomania, relatadas por Carrére na primeira pessoa. Das fases excessivamente aceleradas, anormalmente felizes, muito enérgicas e muito mais activas do que o normal, ao impacto dos períodos de profunda tristeza e quebra de energia, dominados por sensações, emoções, ideias e comportamento autodestrutivos e uma autonomia coartada. A dimensão espiritual, expressa na angústia de um homem com uma propensão inata para a autodestruição, é a cola que junta todos estes frágeis vértices.
Desengane-se, também, quem esperar encontrar em “Yoga” um manual, com estudos académicos e dissertações teóricas. Pelo contrário, vai encontrar um relato despretensioso, acerca das idiossincrasias do ser humano, na relação com o seu corpo e a sua consciência, com as suas imperfeições e, acima de tudo, com a sua infinita capacidade de gerir emoções, umas esfuziantes outras desesperantes. A abordagem dedica-se ao corpo, passando depois pela consciência, pela energia e pelo enquadramento histórico do yoga. As páginas finais estão reservadas a uma mensagem de esperança, e de demonstração do valor da meditação e do Yoga no desenvolvimento pessoal e espiritual. Uma visão optimista da vida, segundo a qual as piores desgraças podem ser positivas, isto se as encararmos como oportunidades para progredir e tornarmo-nos pessoas melhores. Algo que só é possível se reconhecermos e aceitarmos que a grande trindade, medo, vergonha e ódio, faz parte do ser humano, e não deve ser negada. De outro modo, ficaremos refém de uma infinita e desigual luta de esconde-esconde.
“Se trouxeres à tona o que está dentro de ti, o que trouxeres à tona te salvará. Se não trouxeres à tona o que está dentro de ti, o que não trouxeres à tona te destruirá.”
(Evangelho Apócrifo de Tomé)
1 Commentário
Adorei. O livro já me tinha sido recomendado por uma amiga. Consultei e encontrei sua crítica, vou comprar!