Haruki Murakami é uma espécie de escritor entre dois mundos. De um lado está o Japão tradicional, com todas as suas noções de honra, respeito, tradição e uma série de crenças; do outro, a vertigem pela cultura pop, que faz com que possamos ter, na mesma página, um fantasma a dançar ao som dos Beatles (ok, talvez nem tanto mas lá perto).
“Primeira Pessoa do Singular” (Dom Quixote, 2021) é, para quem se tem alimentado de romances como “Kafka à Beira-Mar” ou “Sputnik, Meu Amor”, uma nova forma de ler Murakami, que aqui se coloca diante do espelho e, sem tirar a roupa, nos presenteia com oito histórias pessoais e que não deixam de ser, também, um olhar sobre o mundo contemporâneo.
Créme de la Crème desenha um círculo com uma série de centros mas, inexplicavelmente, sem conferência externa – tudo para descobrir, com régua, esquadro e compasso, a nata da vida; Na Almofada de Pedra traz-nos a recordação de um engate ocasional: uma rapariga que escrevia poemas tanka e que, em género de aviso, lançou para o ar: “Olha, sou capaz de dizer o nome de outro homem quando estiver a vir-me. Não te faz confusão?”; Charlie Parker Plays Bossa Nova, conto que havia sido há publicado no número 7 da Granta Portugal, um passe de mágica que gira à volta de uma crítica musical fictícia de um disco imaginário (ou não?); With the Beatles, banda sonora de eleição de Murakami, passa uma prescrição aos sonhos de juventude. Murakami fala-nos de uma mulher da qual desconhece o nome ou o paradeiro, mas que desconfia que terá grande apreço peças canções dos fab four de Liverpool. Num conto onde há soutiens, música de classe média, falhas de memória, suicídio, acaso, coincidências ou o frenesim da adolescência, entramos de cabeça no furacão Beatlesiano de 1964, através de um instante de 5 segundos que acabou por durar uma vida inteira; Confissões de Um Macaco de Shinagawa leva-nos até uma pousada decrépita, onde há um velho macaco que fala e que trata dos banhos termais, numa narrativa planante onde há um açambarcamento de nomes femininos e um amor, na sombra de Bruckner, entre o platonismo e a semântica; não deixando de se esconder atrás de uma série de máscaras, Carnaval põe um disco de Schumann no prato e mostra-nos a mais feia de todas as mulheres; há também uma Antologia Poética para os Yakult Swallows, onde se sente a paixão pelo baseball ao vivo e se bebe a literatura como uma cerveja preta no ponto; a fechar temos o homónimo Primeira Pessoa do Singular, onde, de vodka gimlet na mão, assistimos a um anti-engate no balcão de um bar. 8 contos para velhos e novos fãs de Murakami.
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