Uma invasão extraterrestre é uma premissa clássica de muitos romances de ficção científica. Mas juntando-se reminiscências da China imperial, máquinas de guerra controladas psiquicamente pela energia vital – o qi – dos pilotos, um sistema patriarcal opressivo e uma protagonista moralmente complexa, disposta a tudo para desafiá-lo, obtém-se algo original. É assim “Viúva de Ferro” (Saída de Emergência, 2022), de Xiran Jay Zhao, uma autora canadiana nascida numa pequena cidade chinesa, que aqui transpõe para um futuro distópico a história de Wu Zetian, a única imperadora da China.
A Wu Zetian deste livro, que nos serve de narradora, vive dois milénios após o primeiro encontro dos humanos com os alienígenas Hunduns, num mundo ciente de ter perdido muito do conhecimento dos seus antepassados, mas que luta para se reconstruir, tendo entretanto estabelecido as suas próprias lendas e tradições. O factor que mais contribui para classificá-lo como distópico, tão ou mais assustador do que a ameaça alienígena, é o retrocesso ao nível da condição feminina, pelo menos no território de Huaxia, no qual a acção se desenrola. Basta referir que foi retomada a prática do esmagamento dos pés das meninas, comprometendo para sempre a sua capacidade de movimento, em nome de uma suposta atractividade sexual – algo importante para as famílias, quando o destino previsto para as filhas é serem vendidas como esposas ou concubinas.
Um comprador habitual é o exército, pois a pilotagem das Crisálidas – as máquinas de guerra construídas com tecnologia alienígena capturada – baseia-se no emparelhamento de pilotos de sexos opostos, sendo as mulheres sistematicamente sacrificadas, exauridas e descartadas como baterias. Raríssimas conseguem estabelecer uniões equilibradas e sobreviver.
Wu Zetian, rebelde por natureza, aceita ser vendida ao exército para vingar a adorada irmã mais velha, vendida antes dela e morta em circunstâncias estranhas. No interior de uma Crisálida, liberta-se do seu corpo alquebrado e ganha asas, iniciando uma jornada de autodescoberta que atrairá novos perigos, pois o exército parece temer mais uma rapariga conhecedora do seu potencial do que um Hundun. A cada provação que ultrapassa, os seus planos tornam-se mais grandiosos e mortíferos, enquanto vai conquistando poder e descobrindo segredos.
O texto lança muitas farpas contra as convenções sociais, sobretudo contra a discriminação sexual, mas resiste habilmente a tornar-se panfletário. A narrativa é extremamente empolgante e a protagonista não é uma heroína inocente nem infalível. Num contexto propício à geração de monstros, que não estimula a bondade nem a compaixão, tanto ela como os seus aliados – de entre os quais se destacam duas personagens masculinas deveras interessantes – cometem actos que contrariam os estereótipos do comportamento heróico.
A obra termina com um equilíbrio perfeito entre revezes e vitórias, mistérios e revelações. Sem pretender estragar o prazer da surpresa, adiantamos que uma figura lendária desperta após mais de 200 anos de sono, é desmentida uma crença anteriormente apresentada como facto, e persiste o enigma acerca da natureza dos deuses da Corte Celestial, que fornecem conhecimento em troca de oferendas – serão humanos, alienígenas, máquinas, ou algo diferente? Tudo se conjuga para nos deixar a aguardar ansiosamente a continuação da saga da fascinante Wu Zetian.
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