“A sala da cabana de Gerstacker estava iluminada debilmente pelo lume do fogão e do toco da vela, à luz da qual, inclinado no nicho, debaixo da trave do telhado, que alia sobressaia obliquamente, estava alguém e lia um livro. Era a mae de Gerstacker. Estendeu a mão trémula e pô-lo a sentar-se junto de si, falava a muito custo, era preciso esforçar-se para a entender, mas o que ela disse”
Para além de ter descrito, na perfeição, a profunda solidão e todo o absurdo – sobretudo burocrático – a que a vida humana está sujeita, Franz Kafka foi também o mestre dos finais inacabados, como o demonstra o parágrafo acima transcrito, retirado do livro “O Castelo” (Livros do Brasil, 2021 – reedição). Para além deste, também “O Processo” e “O Castelo” ficaram com o ar de livros fragmentários, publicados postumamente por Max Brod, o amigo e testamenteiro de Kafka que, para bem de todos nós, recusou o pedido feito por Kafka para que todos os seus escritos ardessem numa fogueira.
No centro do romance está o Castelo do conde Westwest, um lugar quase tão inexpugnável quanto o Lux Frágil dos anos 1990. Para entrar no Castelo, seja para uma curta visita ou para pernoitar, é necessária uma autorização, obtida através de um interminável processo burocrático. O Castelo está no centro de uma aldeia miserável composta por poucas casas que, tal como a Nárnia de C.S. Lewis, parece estar condenada a um Inverno perpétuo. É a este lugar miserável que irá parar K., que, sem perceber bem como, ver-lhe-á ser entregue o trabalho de agrimensor, o que o fará viver num estado permanente de impossibilidade, a roçar o paradoxo: “Mas esta última, reduzida e fugaz esperança, que na realidade nem sequer existe, é a única que possui”.
Nesta aldeia, onde é tudo menos bem-vindo – “O senhor não pertence ao Castelo, o senhor não pertence à aldeia, o senhor não é nada” -, K. irá tentar vencer a burocracia labiríntica e entrar no Castelo, num tour de force onde irá ter uma estranha relação com uma empregada de balcão ou saltar de albergue em albergue – para, a certa altura, dar por si a trabalhar como contínuo numa escola, lugar que Kafka usa para mostrar toda a miséria humana e desigualdades sociais.
Livro que mergulha no mundo da ambição, da escada social, das hierarquias, da sede de poder e dos jogos de interesse, “O Castelo” questiona a interpretação variável da lei, as temidas condições da subalternidade e as condições dos trabalhadores, sem deixar de manter o foco nesse inabalável “embuste administrativo”, num aparelho burocrático que, “correspondendo à sua precisão, (…) é também muito sensível”. Uma vertigem burocrática e um desnorte existencial que conhecerão, com Kafka, o apogeu em “O Processo”.
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