Cumprindo uma missão que poderíamos apontar como serviço público, a Quetzal continua a (re)editar a obra do chileno Roberto Bolaño, escritor maior das Américas. Desaparecido prematuramente em 2003, Bolaño viveu, a partir do momento em que lhe foi posto um prazo de validade em cima, os últimos dez anos dominado por uma febre criativa, numa urgência que deixou à Literatura um dos seus maiores legados. Se “2666” pode ser apontado como um monumento que se vê a quilómetros de distância, tal como o monolito do 2001 de Kubrick, “Os Detectives Selvagens” será, talvez, a sua renda de bilros, um melting pot de poesia e romance que atirou com a literatura para lá da estratosfera.
Publicado em 1997, “Chamadas Telefónicas” (Quetzal, 2022) é uma colectânea de narrativas curtas dividida em três actos que, mesmo estando longe do patamar dos romances atrás elogiados, merece uma espreitadela, com alguns contos verdadeiramente de eleição – sobretudo aqueles que versam sobre outros escritores e que fazem parte do primeiro andamento e de parte do segundo.
A primeira parte, intitulada Chamadas Telefónicas, apresenta-nos cinco narrativas onde a literatura está no centro: Sensini nasce a partir de um concurso literário, onde o melhor conto não terá, aparentemente, vencido. Bolaño dá-nos a conhecer Luis Antonio Sensini, um tipo esquivo que concorre a tudo o que é concurso para ir pagando a renda, mesmo sem ter grande opinião do meio literário: “O mundo da literatura é terrível, além de ridículo”. Um conto onde, como num ringue de boxe virtual, se manterá uma acesa troca de correspondência, surgindo pistoleiros, caça-recompensas ou, ainda, caçadores de cabeleiras; a acção de Henri Simon Leprince decorre em França, “pouco antes, durante e pouco depois da Segunda Guerra Mundial”, tendo como protagonista alguém que não vivencia por inteiro o seu requintado apelido: “é da classe média em declínio, tem falta de dinheiro, uma boa educação, amizades certas”; “Um poeta consegue suportar tudo”. É esta a convicção de Enrique Martín, convicção que o levará “à ruína, à loucura, à morte”. O narrador deste conto, onde cabem a esquizofrenia, a não escrita, cifras e uma dedicatória a Vila-Matas, é Arturo Belano, protagonista de “Detectives Selvagens” – e alter-ego de Bolaño -, que aproveita para deixar isto gravado na pedra: “A vida não só é vulgar como também inexplicável”; Uma Aventura Literária traz-nos uma luta intensa entre egos literários, um deles com a magia do seu lado; a fechar este primeiro andamento está Chamadas Telefónicas, um amor infeliz que, por acção de muitos comprimidos e alguma amargura, conhecerá uma catarse amorosa.
O andamento do meio intitula-se Detectives, e também ele é composto por cinco curtas narrativas: em O Verme passeiam-se dois animais de hábitos, muito diferentes entre si – um deles é, novamente, Arturo Belano; A Neve é uma história de amor e desamor, acompanhada pelo fantasma de Bulgakov, de um chileno que passou pela União Soviética – e que arranca depois de esvaziada uma garrafa de vodka. Afinal, “primeiro esvazia-se a garrafa, depois a alma”; Outro Conto Russo revela um sevilhano que combateu na frente russa na Segunda Guerra Mundial, e que vê a sua vida ser salva pela incompreensão ou confusão gramatical; William Burns, história que nos chega sob o lema do acrescento de pontos num conto passado por várias mãos, versa sobre uma relação de um tipo com duas mulheres de idades diferentes, mas não tão distantes para poderem ser confundidas como mãe e filha; o último conto é Detectives, uma história no formato de um diálogo ao volante que começa com uma discussão sobre armas de fogo vs armas brancas, para terminar com uma radiografia ao Chile.
O derradeiro andamento, e aquele onde não haverá um conto propriamente memorável, é Vida de Anne Moore: Companheiros de Sela fala-nos de Sofía, um misto de coelho e fantasma que terá feito amor de todas as formas possíveis, e que apenas comia flocos de puré misturados em água morna. Uma narrativa que decorre numa cela que será, talvez e segundo Bolaño, a condição do amor; Clara “era mamalhuda, tinha as pernas muito finas e os olhos azuis” e, de forma a evitar os erros gramaticais, usava nas cartas que escrevia uma “parcimónia epistolar”. Um conto onde as relações são vistas como montanhas-russas, amores negros que podem salvar ou uma vontade de proporcionar consolo; Joanna Silvestri, “trinta e sete anos, actriz porno”, está prostrada numa clínica, enquanto vê passar as tardes a ouvir a história de um detective chileno; a encerrar este andamento e o livro está Vida de Anne Moore, um dos contos mais longos que acaba por ser salvo pelo cavalheirismo: “…sigo sempre os conselhos de uma dama”.
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