“Desconhecido, seja tu quem fores, abre-me para ficares a conhecer o que te encherá de espanto”. Esta frase, que surge logo nas páginas primeiras de “Uma Cidade nas Nuvens” (Editorial Presença, 2021) em jeito de promessa, será cumprida com distinção por Anthony Doer. O escritor norte-americano irá transportar o leitor até Nefelocucolândia, uma cidade nas nuvens que é quase um mito urbano, da qual sobraram apenas 24 fólios incompletos para comprovar a sua veracidade – fólios a partir do qual Doer irá construir um romance assombroso, que atravessa três tempos e geografias: Constantinopla, século XV; Idaho, século XXI; e Argos, nome de uma nave espacial que circula algures no futuro em lugar e linha temporal incerta.
Dentro das muralhas de Constantinopla vive Anna, uma orfã de 13 anos que vive numa casa de mulheres que bordam vestes paroquais – apesar do seu pouco jeito para o ofício -, e que desenvolve uma vontade férrea de aprender a ler e a escrever, tornando-se uma salteadora dedicada a encontrar velhos livros. Um desses livros conta a história de Éton, que deseja tornar-se um pássaro e voar para um paraíso utópico no céu. Fora das muralhas vive Omeir, um rapaz da aldeia conhecido como o menino-elefante por causa de uma fenda no lábio superior, e que se vê recrutado para o exército, juntamente com os seus bois.
Zeno é um octogenário que lutou na guerra da Coreia, e que se sente observado, desde criança, por estátuas de louça julgadoras. Em Idaho, quinhentos anos depois de Anna contar a história de Éton à sua irmã enferma, Zeno dirige cinco crianças numa encenação desta história preservada como que por milagre, não sabendo que Seymour, um adolescente para quem os barulhos do mundo são uma agressão diária, decidiu plantar uma bomba na biblioteca.
Num futuro distante – talvez não tão distante quanto isso -, na nave interstelar Argos, Konstance escreve, de memória, a história de Éton da forma como o seu pai lhe ensinou, sonhando com conhecer a Terra, planeta que apenas visitou durante as suas incursões à biblioteca em simulações de realidade virtual, percorrendo um Atlas onde apenas se sentem os pés.
Um livro sobre o esquecimento e a precariedade, a infrutífera tentativa de o homem derrotar a morte, mas também sobre a perpetuação da memória, daquilo que nos faz humanos, e que destaca as histórias como aquilo que de mais precioso vamos deixando para trás na curta existência terrena, construindo uma intemporal enciclopédia literária humana. Mas também, em paralelo, sobre a necessidade de mudança num “mundo que derrete cheio de ruído“, de forma a evitar a anunciada aniquilação e ter de deixar, como legado às futuras gerações, uma existência dentro de uma caixa hermética, recordando o planeta terra através de imagens de arquivo. Soberbo.
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