Se, “As Telefones” (Relógio D`Água, 2020), um dos mais recentes trabalhos de Djaimilia Pereira de Almeida, pode ser considerado uma homenagem ao género literário da diáspora – o telefonema -, rapidamente o leitor captará uma outra homenagem: a do amor à distância que, mesmo subjectivo e conturbado, se torna possível. E nem o isolamento, a pobreza, os regimes políticos ou um Oceano de distância o anulam, e até mesmo a tecnologia, que quebrou esse último elo metafórico – o fio do telefone – e anunciou a liberdade (ou não) de receber um telefonema a qualquer hora.
“(…) quando não estamos em linha, não existimos. O telefonema: uma ressurreição semanal, seguida de uma nova escuridão. Habituámo-nos ao que as chamadas fizeram de nós. Emprenhámos pelos ouvidos.”
“Não conheço o teu corpo, Filomena. Não conheço o meu corpo. De olhos fechados, não me lembro da tua cara. De olhos fechados, não sei como é a minha cara. Conhecemo-nos por telefone. Na auto-estrada, de soslaio, um cemitério de cabines telefónicas, à entrada de Lisboa. É o lugar onde as desmontam (…). As cabines ainda intactas lembram (…) o exército na iminência do massacre, escudo contra escudo, elmo contra elmo, tenso, beligerante, mas inofensivo como no interior de um cristal.”
Mãe e filha, separadas pelo regime que imperou e impôs a fome – fome que impôs depois o afastamento -, reatam a relação possível através de chamadas ao longo de anos sucessivos, questionando-se sobre quão nebulosa é uma relação à distância, sobre o quanto se perde na imagem que não se conhece e da qual não se vêem as feições ou os corpos a alterarem-se. “As Telefones” revela, metaforicamente, a relação facilmente conturbada entre mães e filhas, que talvez exista na maioria dos casos. Onde começa uma e acaba outra? Em que partes do corpo se revelam e se reconhecem os corpos que se lhes seguem? Que herança física fica mesmo de quem sentimos e amamos à distância?
“Também tu morrerias no fim da chamada, até o meu coração voltar ao devido lugar (…). Alto, a tua voz entra pela minha vida. É um murmúrio do nada ao desconhecido. Não tens cor nem forma nem conteúdo, não és bicho nem vapor nem gás. O telefone traz até mim o teu feitiço. (…) A cada instante, és para mim um vazio. Não sei com quem me pareço, como se a verdade fosse uma história sem princípio. Se não conheces o meu corpo, também não o conheço.”
À medida que o tempo avança e os corpos se transformam, as mulheres aparentam uma proximidade, ampliada pela tecnologia, a maturidade e outras condições de vida. Mas que marcas ficam de anos e anos de crescimento? O que determina a vergonha do corpo alheio quando este se faz perto? O que falsifica uma intimidade já de si forjada? Até quando se consegue recuperar e sarar o afastamento forçado? Quantas máscaras se escondem atrás de um telefonema, e quantos fantasmas ficam no simulacro do que podia ser uma família?
“Quem podia salvá-las de estarem nuas diante uma da outra enquanto o mundo não parara para as deixar habituarem-se, e lhes era, no seu movimento, indiferente? Que importa, afinal, a esse mundo que se conhecessem mal, que ali estivessem, e o seu desajuste, o modo como não sabia ser ela mesma diante daquela mulher, nem uma mulher diante dela, levando a que a filha que Filomena conhecia não fosse quem Solange julgava ser (…).”
O relato entrecortado baralha o friso cronológico. A dureza revela, à distância, como ela pode ser – uma violência -, mas enaltece também o amor como ele por vezes é, como tem que ser: uma aprendizagem. Embora não esconda a dificuldade e a confusão, a complexidade e a reflexão que exige e absorve.
“(…) sem que Bell pudesse adivinhá-lo, o desenvolver de uma língua nova, comum a tantos e tantos lugares, paralela à língua falada, mas dela dissemelhante. A língua telefónica, aquela em que casais se apaixonaram e se soube da morte dos soldados nas trincheiras. Aquela com alguns se masturbam, outros parecem, outros se apartam. A língua em que a distância é vencida pelo teatro da voz, em que todos, biliões somos actores experientes. (…) Desde o caderno de Bell até hoje, até o telefone se tornar vício, companhia, segunda pele. E nós, com ele, auscultadores de carne, humanidade telefónica, máquinas de coração na boca, bonecos num caderno em breve antigo.”
Da leitura fica-nos a sensação de que somos todos, por motivos diferentes mas com o telefone por cúmplice, actores experientes na arte de ter saudades. E “As Telefones” é um pequeno grande tratado sobre a Saudade.
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