“Ainda há vida, contudo”. Estamos, segundo o calendário Atwoodiano, no ano 25. Toby, certa de que não será a única habitante do planeta, aguarda mais ou menos tranquilamente a ameaça que virá do “muro de árvores e videiras e frondes e vegetação arbustiva envolvente”, recordando os tempos em que passava os dias num emprego pouco exigente num SPA.
Ren, a quem ensinaram que a escrita não era fiável, que “o Espírito viaja de boca em boca, não de coisa em coisa” e que “os livros podem ser queimados, o papel, desafazer-se, os computadores podem ser destruídos”, era, antes daquilo que para a história ficou conhecido como o Dilúvio Seco, uma das “badalhocas mais limpas da cidade”, isto quando actuava como bailarina de trapézio.
Estamos n`“O Ano do Dilúvio” (Bertrand Editora, 2021 – reedição), segundo volume de uma trilogia assinada por Margaret Atwood. Um livro que, primeiro de forma subliminar e depois em jeito de choque eléctrico, faz uma inesperada e mágica ponte com “Órix e Crex”, o primeiro e surpreendente livro desta viagem apocalíptica, através de uma geografia do que em tempos foi um planeta muito parecido com o nosso.
É tempo para avanços e recuos na estranha linha temporal criada pela genial Atwood, que nos faz regressar ao ano 5 para nos contar a história de Adão Um, o líder dos Jardineiros, uma seita dedicada à fusão entre ciência e religião e à preservação de toda a vida vegetal e animal. Alguém que, dizendo ter uma costela vidente, previu que estaríamos a centímetros de um desastre natural que mudaria por completo o cenário terrestre. Uma vidência materializada através do Dilúvio Seco, praga criada em laboratório pelo próprio homem.
Margaret Atwood faz um retrato exemplar da tendência do homem para a auto-destruição, relembrando-nos que “o teclado moral Humano é limitado” e que, apesar de esta se tratar de uma obra de ficção, onde há por exemplo criaturas metade leão/metade cordeiro – os cordeleões -, está assustadoramente perto da realidade. Como neste retrato que, em tempos recentes, descreveria na mouche o cenário pandémico, podendo mesmo servir de comunicado meio tresloucado e em jeito de reza do Serviço Nacional de Saúde:
“Que Deus nos livre da armadilha do passarinheiro e nos cubra com as suas penas, e que debaixo das suas asas possamos crer, como diz no Salmo noventa e um: não temerás a peste que alastra nas trevas, nem o flagelo que mata em pleno dia.
Deixai-me lembrar-vos da importância da lavagem das mãos, pelo menos sete vezes por dia e depois de cada encontro com um desconhecido. Nunca é cedo de mais para pôr em prática esta preocupação essencial.
Evitai qualquer pessoa que esteja a espirrar.
Cantemos”.
O puzzle ficará completo com “MaddAddam”, já disponível nas livrarias.
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