A Noite da Literatura Europeia (NLE) celebrou dez anos de existência em Lisboa e, para comemorar a data, regressou ao coração de cidade no passado dia 4 de Junho, distribuindo o evento por cinco espaços do Campo de Santa Clara, na freguesia de São Vicente.
Após dois anos de ausência, um por ter ficado nas vozes da rádio e outro no jardim dos Poetas em Oeiras, a NLE regressou (exclusivamente) ao formato presencial, contando com os habituais intérpretes (e alguns estreantes) que dão vida às obras de geografias espalhadas pelos vários cantos da Europa e por vários estilos literários, do Romance à Poesia, da Banda Desenhada ao Teatro, sem esquecer a Literatura de Viagens e de Auto-Ajuda. A noite prometia ser variada, e os espaços escolhidos também contribuíram para isso.
Antes do périplo literário, o evento abriu com leituras de alguns momentos altos dos anos anteriores, pedaços de textos que se interligaram uns com os outros mostrando bem o que a Europa pretende ser: uma confluência de pessoas, lugares e momentos, onde começa um acaba o outro. Nesses excertos, reencontrámos o cenário intimista a que assistimos aquando da leitura de “Viagens”, da Nobel Olga Tokarczuk, numa das escolas centenárias de Lisboa – mas só na nossa cabeça, já que esperávamos mais deste prelúdio nostálgico. Talvez pequenos excertos gravados em vídeos, que mostrassem as performances tal como elas foram, na voz e nos espaços em que realmente aconteceram.
O tour peregrino desta noite levou-nos ao pátio bucólico da Trienal de Arquitectura e às suas salas de generoso pé direito, que elevam qualquer ambiente, bem como as escadarias que anunciam o lado majestoso do edifício. Neste espaço, pudemos ouvir Pedro Saavedra – não poderíamos pedir melhor cicerone -, por entre o restolhar das folhas que estalavam debaixo dos pés de quem procurava lugar no pátio, que nos conduziu pelas reflexões certeiras de Irene Valejo e seu aclamado “O Infinito num Junco”. Com toda a classe e charme, Saavedra fez uma excelente abertura da noite, sobre o quanto muda o sussurro dos livros, entre as épocas e as disposições do leitor que, num baile lento, entra na leitura de um livro.
Trocando o pátio pelas salas de tectos altos, fomos ouvir a leitura – mais leitura do que declamação, é certo – dos poemas de Matilde Campilho, que presente na sala assinava livros para uma plateia imensa, refrescada a notas de mentol. Noutra sala de tamanha envergadura, voz e imagem, davam alma à banda desenhada francesa.
Deixando a zona do Mercado e da Trienal, pudemos ainda deambular pelos restos de Feira da Ladra, espalhados por bancas meio desmontadas, com artigos pelo chão e alguns resistentes em vendas mais tardias que, após um sábado quente e concorrido, ainda não tinham rumado a casa.
A entrada do Panteão estava concorrida, por isso rumámos ao Polo Cultural da Junta de Freguesia, onde nos fomos perder entre belas e inocentes cartas de amor, que Carlos Malvarez soube escolher para nos dar a conhecer uma história baseada em factos verídicos da família do autor Peter Gardos – que tivemos, há alguns anos, o privilégio de ouvir aquando do lançamento do livro em Portugal. Recordámos assim “Carta à mulher do meu futuro”, que continua a ser um título fabuloso.
Descendo a escadaria por entre cartas soltas, ouvíamos música que nos convidava a esperar e, de seguida, a tentar perceber o que se passava na Finlândia. E com “Sisu: o segredo finlandês para encontrar a felicidade”, navegámos por memórias de Katja Pantzar, calmamente interpretadas por Ana Água, que nos conduziu entre mergulhos gelados, saunas, música e chás de felicidade.
De espírito leve entrámos na porta aberta que se seguia. Próxima paragem: Chéquia. Aqui, os espíritos e os humores estavam mais instáveis, enquanto duas jovens, a autora Radka Trestikova e a intérprete Lígia Cruz, narravam, ora em português ora em checo, trechos de uma road trip de fuga.
No alinhamento de algumas dúvidas e medos, entrámos na Sala das Paredes Inscritas, onde o fundo negro foi um excelente palco para a voz carregada e firme de Fernando Rodrigues, que muito bem deu voz à poesia do austríaco Karl Lubomirski.
Já satisfeitos com as várias leituras e cenários conseguidos, chegava a vez do momento estrela – ou não fosse o Panteão Nacional chão sagrado. Antes de ouvirmos a Itália, subimos a escadaria de pedra, que nos conduziu a um homem de semblante escondido e carregado, que alimentava a aura mística da sala do coro baixo, cenário excelente para a leitura da Polónia com a aclamada série de fantasia de Andrzej Sapkowski. Entretanto soava já a leitura Davide Enia, voz que ecoava no Panteão como se uma missa estivesse a ser celebrada. “Notas sobre um naufrágio” estava rodeada de túmulos e memórias, enquanto tantas outras vidas e memórias naufragavam ao largo de Lampedusa.
A década de peregrinação literária por entre locais emblemáticos de Lisboa estava na recta final, e ainda faltavam quatro países: a estreante Estónia, o Luxemburgo – que tinha uma obra capaz de deixar o leitor com uma pulga atrás da orelha -, a Alemanha e a Irlanda – com autores e intérpretes já conhecidos e lidos. Com a noite já fresca sentámo-nos nos claustros do Convento do Desagravo, sob a sonoridade apetecível do vento nas palmeiras, para ouvir poesia de Luigeluulinn Emapuhkus na voz de Cheila Lima, e assim aplaudir esta estreia.
Escutámos depois a música que nos chamava do cantinho destinado à Alemanha, que nos fez sorrir ao ver Ulisses Ceia, trajado a rigor, como se fosse para o Estoril Open, enquanto os Wham e outros hits dos anos 80 ecoavam.
A cantarolar cruzámos o olhar com o de Inês Lapa, que, tal como é habitual, deu voz e corpo às palavras mais actuais e aclamadas da Irlanda, desta vez com “Milkman”, de Anna Burns, que tanto tem sido destacado – e que a actriz interpretava empoleirada numa mesa de uma sala de aula/biblioteca, que completava bastante bem o cenário.
Terminámos da melhor forma no Luxemburgo, para acalmar a curiosidade com a obra “Moi, je suis Rosa!”, de Nathalie Ronvaux. As fotos demonstram a aura conseguida pelo espaço, luz e posicionamento da actriz Carolina David, que soube passar para o espectador a dureza da luta feminista, mas também a segregação que, ainda hoje, muitas mulheres sentem por esse mundo fora.
Esta décima edição da Noite da Literatura Europeia foi também isso: um palco para relembrar as lutas que se travam diariamente, e que chegam às portas e às águas da Europa, ou aquelas que, lá longe, os seus autores trazem para perto, denunciando injustiças que deviam estar já cimentadas apenas nos livros de história. Um palco para denunciar a guerra injusta, a crise humanitária das migrações, a luta das mulheres em tantas frentes ou os conflitos separatistas. Temas mais do que actuais e que tantas vidas sacrificam, e que têm lugar na literatura desde todo o sempre.
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