“Onde as Peras Caem” (Dom Quixote, 2022), romance de Nana Ekvtimishvili, foi bastante aclamado pela crítica e nomeado para vários prémios, entre eles o Man Booker Prize, um pouco como vem acontecendo com o seu trabalho de realização cinematográfica, já com uma nomeação para um Óscar na categoria de melhor filme em língua estrangeira.
Talvez devido a essa experiência no cinema, o tom de “Onde as Peras Caem” seja, em grande parte, telegráfico, quase um guião. Embora bastante fique por dizer nas entrelinhas e à percepção do leitor, para que este sinta, tal como as crianças, o lodaçal (local onde as peras caem) que envolve a narrativa e do qual todos querem fugir.
Muito deste retrato, infelizmente já bastante exposto, é feito num tom forte e bastante vívido (como no episódio da morte e enterro de Sergo), através de metáforas muito bem conseguidas, em pedaços de texto mais descritivos, como é o caso do varandim que cai junto com a janela, portada e caixilho, e que confere ao quarto dos trampolins o toque de abismo – o mesmo quarto a que se abeiram todas aquelas pequenas vidas à mercê da Escola de Idiota da rua Kerch, numa Tbisili, Geórgia, recém-independente. Crianças cuja única biografia é a do abandono e do abuso, nas suas mais variadas formas e experiências.
“(…) não há nada na escola que chegue perto da alegria pura de saltar em cima das bolas da cama, principalmente à chuva. Recentemente, o quarto ganhou mais uma atração: sem pré-aviso, a pequena varanda desabou, levando com ela a grade de ferro e várias placas de ardósia do telhado, que, juntamente com bocados de cimento, formaram uma pilha no chão. Agora há apenas uma viga de suporte a sair da parede. Ninguém se magoou, embora na altura o recreio estivesse cheio de crianças a jogar futebol. Escusado será dizer que as autoridades escolares ficaram tão aliviadas que não tiveram tempo para se aborrecer por a varanda se ter desmoronado. Mas, passado alguns dias, a porta para a varanda também desapareceu, assim como a ombreira. Quem a tirou achou que provavelmente, como a varanda já não existia, ninguém precisava da porta que a ela conduzia. Assim, há agora um vazio do tamanho de uma porta numa das paredes do quarto dos trampolins através do qual, em dias como o de hoje, se podem ver um céu azul sem nuvens, Plátanos e blocos de apartamentos do lado.”
Esta é a história de Lela e Irakli. E de Sergo, Koba, Vaska, Zaira, Marcel, Levan, percebendo-se que a autora quis demonstrar o quão infinitos são os nomes dos que por ali passaram, numa denúncia do abandono, abuso, desamparo e negligência com que muitas crianças se deparam quando a família e a sociedade não têm mais respostas a dar, a não ser a da institucionalização.
Outra metáfora está no próprio título, onde até o lugar onde a fruta cai é uma ameaça, apesar de contrastar com um cenário quase idílico de frutos lustrosos e uma boa paisagem – como aquela que se quer pintar quando as crianças mais pequenas são mostradas para adopção.
Tal como Lela tem por certo querer matar Vano e sair dali, mesmo que não saiba para onde, também o leitor sabe que a realidade será mais árida e cáustica. Tal como o mostra a excelente descrição, também ela metafórica, do Verão na rua Kersch.
“Chega o mês de agosto. O tempo passa sempre devagar na escola, mas agora parece ter parado completamente. As ruas estão vazias; o ar parece imóvel; até os cães fazem o mínimo possível, mexendo-se apenas para seguir a sombra rastejante. Não há qualquer perspectiva de chuva. Não há nem pequenos intervalos mais frescos ao longo do dia. É quase impossível sair de casa. O sol queima desde que nasce, uma enorme brasa brilhante que caustica impiedosamente este lado do mundo. O chão está seco como ossos, rachado com uma parte de cima de um bolo, e até as formigas cor de ferrugem parecem desesperadas, correndo freneticamente sobre a terra escaldante, à procura de uma fenda para se abrigarem e arrefecerem as suas minúsculas patas queimadas. Ao fim da tarde, quando o sol se põe, o ar continua pesado. A Lua projeta sombras que transformam a paisagem. Finalmente, sopra uma brisa hesitante, e os ramos começam a sua discreta oscilação. Ouve-se, por fim, o canto dos grilos.”
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