É o segundo romance de Marta Orriols, escritora espanhola que vive e trabalha em Barcelona: “Doce Introdução ao Caos” (D. Quixote, 2022) apresenta-nos o casal formado por Marta, fotógrafa, e Dani, guionista – jovens cosmopolitas, amantes de copos e festas, confrontados com a gravidez inesperada de Marta, um abalo de vida tectónico.
A primeira reação da jovem fotógrafa é lapidar: “Estou grávida. Não quero ir para a frente com isto”. Ambiciosa e dinâmica, com apenas 30 anos, tem planos para o futuro, e a maternidade não se encaixa neles. Em relação a Dani o caso muda de figura: carrega em si uma falta, a herança de um pai ausente, falecido era Dani muito novo. Essa mágoa antiga faz toda a diferença, e é por causa dela que nasce a discórdia: Dani hesita, não tem a certeza, pensa que talvez deva ser pai. Sente a nostalgia de uma juventude a desvanecer-se em direcção à meia idade, e vê uma criança como um novo foco, um antídoto para o veneno do desalento.
“Com a literatura não se procura apenas retratar uma realidade, mas encontrar a verdade”, diz a autora. “Os personagens têm de duvidar, e as suas dúvidas abrem universos maiores”. De facto, o motor do romance é a dúvida que assola cada um dos protagonistas – os sentidos opostos que as suas sensibilidades apontam, como bússolas. Inevitavelmente, a relação começa a rachar sob o peso da decisão unilateral de Marta.
É interessante explorar onde se desenha a fronteira: claro que uma gravidez responsabiliza os dois membros do casal. Mas terá a decisão da mulher mais peso que a do homem, por ser ela a carregar a criança no ventre? O romance não nos dá respostas, não mergulha, antes paira sobre os acontecimentos e as emoções dos protagonistas, como um drone. A prosa na terceira pessoa é descritiva, e poucas vezes dá voz aos personagens. Orriols prefere defini-los usando flashbacks, para dar densidade às suas motivações.
A escritora catalã consegue estabelecer os dois pontos de vista com precisão: Dani vê a paternidade de uma forma intelectual, idealizada, um farol a apontar o sentido da vida, um sentido que lhe escapa como areia na ampulheta; Marta tem uma visão mais concreta, sente no corpo o peso real, físico, que a maternidade lhe pode colocar como mulher, a avalanche de mudanças que se anuncia com o teste positivo. Abdicar de si própria e do seu futuro é algo que não consegue aceitar.
A escrita de Orriols é nítida, carregada de imagens, cores e cheiros – mas fica a ideia de que a narrativa é mais intelectual do que física. As interrogações e ambiguidades dos dois jovens parecem diluir-se com cada página. A prosa é apurada, mas falta a esta história muito ordeira um pouco de carne, sangue e caos.
1 Commentário
Gostei de ler esta opinião, tem interesse o que a mulher e homem pensam face ao aparecimento de uma criança.
Obrigada pelo teu artigo e beijinhos.
Mafalda Rio Tinto