“Eu não tinha nenhum futuro a não ser o próximo telefonema a marcar um encontro. Tentava sair o menos possível fora das minhas obrigações profissionais, ele sabia esses horários, temendo acima de tudo falhar um telefonema dele durante a minha ausência. Também evitava servir-me do aspirador ou do secador de cabelo porque me teriam impedido de ouvir tocar o telefone.”
Uma mulher independente julga-se sem futuro, a não ser aquele vivido com um homem casado. Por vezes aflita, outras alienada, procura encontrar formas de passar o tempo e de escrever sobre esse romance fugaz, essa paixão simples, onde a identidade masculina nunca surge revelada, já que esse ser apenas figurou na sua existência e sempre com as horas contadas.
“Tenho a impressão de que este encontro não aconteceu. Não está em lugar nenhum do tempo da nossa história, é só uma data, 20 de Janeiro. O homem que voltou essa noite já não é aquele que eu trouxe em mim durante o ano em que ele esteve ali, e depois enquanto eu escrevia. Esse homem, nunca mais vou voltar a vê-lo. No entanto, é este regresso, irreal, quase inexistente, que dá à minha paixão todo o seu sentido, que é não ter nenhum, e ter sido durante dois anos a realidade mais violenta que eu possa conceber e a menos explicável.”
Terá sido verdadeira esta paixão? Se sim, o que representa este relato diarístico? Uma ficção que exacerba uma memória para a fazer perdurar? Essa mulher, cujo tempo depende constantemente da vontade alheia, também não parece saber, e talvez escreva para organizar sentimentos, clarificar ideias, purgar-se. O relato cru e sintético, quase como quem anota uma lista de tarefas, revela intensidade mas mantém o mistério, obrigando o leitor a fantasiar e a construir os capítulos que parecem faltar. Quantos encontros tiveram ambos, mais dentro da sua cabeça do que propriamente cara a cara, corpo a corpo?
Parte do traço que delimita este quadro é o da dúvida, misturada com episódios delirantes de desejo e paixão, outros de puro devaneio, mas também de uma grande solidão, embora seja uma confidência pouco sentimental.
“(…) tinha a impressão de me abandonar a um prazer físico, como se o cérebro, sob o afluxo repetido das mesmas imagens, das mesmas memórias, pudesse gozar, como se fosse um órgão sexual igual aos outros. Durante esse período, todos os meus pensamentos, todos os meus actos eram uma repetição daquilo que tinha acontecido antes. Queria forçar o presente a voltar a ser o passado aberto sobre a felicidade.”
Essa medida da felicidade é alimentada com cálculos simples – “há duas semanas com ele“, “há um ano quando ele fez aquilo…“, “naquele dia quando juntos…” -, o friso cronológico é o de uma repetição de encontros interrompidos por um acumular de esperas – um desamparo. “Uma Paixão Simples” (Livros do Brasil, 2020), livro de Annie Ernaux, é isso mesmo: mais do que o revelar de um caso amoroso, trata-se do relato de “um desamparo cuja origem foi um homem”.
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