Exímio contador de histórias, João Tordo continua a mostrar por que é Prémio Saramago e por que continua a acumular galardões, como é o caso de Prémio Literário Fernando Namora, com o seu romance “Felicidade”. “Águas Passadas” (Companhia das Letras, 2021), publicado em 2021, é mais um excelente exemplo da capacidade do autor de criar enredos complexos, ambientes pictóricos e personagens reais.
Este thriller, o segundo de Tordo, começa com o aparecimento do corpo de uma jovem numa praia e envereda por uma investigação profunda das causas da morte, pela procura do responsável e pela resolução do crime, não sem contextualizar as personagens principais com um passado tenebroso e um presente igualmente difícil.
Por um lado, ler “Águas Passadas” vai levar o leitor não apenas a tecer as suas próprias teorias, à medida que acompanha o desenrolar dos acontecimentos sob a perspectiva de Pilar, a polícia que lidera o processo, mas também a olhar com atenção para as pessoas à sua volta: afinal, o que escondem elas?
Enquadrada num dos invernos mais chuvosos dos últimos anos, esta narrativa dá os seus passos num ambiente molhado, escuro, sujo, no qual as personagens são igualmente falíveis, inconstantes, débeis. Pilar Benamor, a protagonista, é uma agente da PSP dedicada e destemida e, por trás da sua farda, esconde-se uma mulher frágil, viciada, vulnerável. Cícero, importante coadjuvante, é vivido, duro, inflexível, escondendo um passado que o tornou desajustado, quebrado e solitário. O cenário, delimitado entre Lisboa e Cascais, apresenta as dicotomias da realidade no país nas últimas décadas do século XX e nas primeiras do século XXI: a rede obscura de droga no centro da capital, a podridão do submundo; o sistema judicial, o poder das instituições. A contrariedade entre o mundo dos pobres, dos desgraçados, dos sem-futuro, e o dos ricos, dos poderosos, dos manipuladores.
Com um realismo surpreendente, “Águas Passadas” assentou numa pesquisa muito alargada de João Tordo, algo que está latente da primeira à última página, conferindo uma realidade intensa a cada uma das cenas e colocando o leitor em suspenso sobre o caminho da história. Afinal, são inúmeras as bifurcações que Tordo nos apresenta ao longo do livro, optando sempre por escolher a mais inusitada. Com uma enorme sensibilidade na criação das personagens, o autor mostra-as como tridimensionais, complicadas e inteiras.
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