“Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer”. As palavras são de Italo Calvino, usadas no lançamento desta adaptação gráfica de “Drácula” (A Seita, 2021), livro que inscreveu o nome de Bram Stoker na enciclopédia dedicada à história da literatura.
Nascido em França em 1947, Georges Bess iniciou a sua carreira na banda desenhada na Suécia, desenhando histórias do Fantasma, de Lee Falk, para os países nórdicos, mas foi o encontro com Alejandro Jodorowsky, no seu regresso a Paris, em 1987, que iria mudar a sua carreira. Com Jodorowsky, Bess vai realizar as séries O Lama Branco, Anibal 5 e Juan Solo, títulos que, a par com as séries que escreveu e desenhou, o ajudaram a afirmar-se como um nome incontornável da BD europeia, estatuto patente nesta adaptação a preto e branco do homem que fez do vampirismo uma cena cool com muito romantismo à mistura.
“Drácula”, com o selo A Seita, dá início a uma nova colecção intitulada Nona Literatura onde, de acordo com o editor José Pedro Castello Branco, se irão “explorar visões da BD sobre clássicos da literatura mundial. Visões que não só respeitam como acrescentam – na medida em que um enfeite acrescenta algo a um momento arquitectónico. Visões que se preocupam não só em informar da riqueza original da obra, como em procurar uma nova perspectiva de algo que julgamos conhecer intimamente, mas que, afinal, ainda tinham muito por descobrir”.
Georges Bess, o autor, tinha desenhado e escrito para a editora Glénat a série Le Vampire de Benarès, mas o convite para esta recriação vampiresca partiu do editor Phillipe Hauri, depois de este ter visitado uma exposição de Bess com desenhos a preto e branco. E, se bastou uma visita ao cemitério de Highgate, em Londres, com toda a sua atmosfera gótica, para convencer Bess a aceitar o repto, é precisamente no cemitério – neste caso, o de Whitby – que arranca a acção desta adaptação, onde Mina lamenta a ausência de notícias de Jonathan Harker, cinco semanas depois de este ter partido, aceitando o convite de um estranho Conde: “Ao longo da nossa correspondência, o conde falou-me da região para onde viajo. Fica na ponta do país, na fronteira entre três estados: a Bucóvina, a Moldávia e a Transilvânia, em plenos Montes Cárpatos”. Um lugar onde, apesar dos avanços da civilização, se continuava a falar de “superstições e crendices saídas da noite dos tempos”.
Ao ser recebido pelo conde, Jonathan recebe umas boas-vindas que não escondem um certo ar de mau presságio, escondido por baixo de várias camadas de cavalheirismo: “Seja bem-vindo à minha casa! E rogo-lhe, entre de sua livre vontade. Quando finalmente partir, deixará aqui um pouco da alegria que trouxe consigo”. Mas quem é, então, este conde que a literatura imortalizou? Nas palavras de Jonathan, não se deixando seduzir pelas primeiras aparências, tratava-se de “um homem singular. Tinha uma aparência lívida, quase cadavérica. A pela da cara dele fez-me pensar irresistivelmente no pescoço de um abutre que tinha visto num zoológico de Londres, em Westminster. A face emaciada dele era percorrida por veias finíssimas, e uma camada de pó de arroz espessa não conseguia camuflar uma rede de verdadeiras rachas. E os seus lábios, tão finos que pareciam inexistentes, escondiam dentes muito brancos e pontiagudos. Parecia não ter idade, ou pelo menos eu não conseguia dar-lhe uma. Emanava dela um odor fétido, enjoativo, que me deu náuseas”.
Numa adaptação onde Drácula está um pouco em segundo plano, cedendo protagonismo a Jonathan Harker, a Mina e a Lucy, ao discípulo das trevas de nome Renfield ou ao professor Van Helsing, conhecedor das doenças obscuras que se infiltram no mundo, Georges Bess adapta de forma fiel o livro de Stoker, não se esquecendo de mergulhar na problemática da sexualidade da sociedade da época, no medo da doença e do pânico das infecções, das tensões vividas pela religião perante o desconhecido, partindo de uma paisagem gélida, “ao mesmo tempo aberrante, fantástica e aterrorizadora, onde o homem não tem lugar”.
Georges Bess usa uma composição variada ao nível das vinhetas, algumas vezes bastante despidas ou com ar de esboços, outras com composições detalhadas que parecem storyboards feitos por um desenhador obsessivo, onde há ravinas perigosas, lobos encorpados, árvores despidas que parecem ter vida própria ou monumentos que fazem, da arquitectura, uma arte ao serviço do terror. Protejam bem esse pescoço.
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