“A vida escorre como a água. Umas vezes são pingos de chuva tímida, e nós estendemos a mão em concha para a recolher; outras são bátegas fortes, e nós tentamos segurá-la como podemos, mas em vão.”
Estes pensamentos pertencem à narradora de “Madalena” (Dom Quixote, 2022), uma mulher de trinta e poucos anos, professora, formada em História, confrontada com o diagnóstico de cancro da mama em fase avançada. Desta figura, única na sua individualidade, mas capaz de representar vivências de muitas outras, nunca chegamos a conhecer o nome. Contudo, graças à escrita segura e contida de Isabel Rio Novo, que nos conduz pelo cenário devastado de uma vida surpreendida pela proximidade da morte, sem jamais resvalar para o sentimentalismo, ela adquire perante nós uma consistência e uma humanidade impressionantes.
Como forma de evasão, e por se ressentir dos objectos mais familiares, que assistiram impassíveis ao crescimento dos tumores, a protagonista dedica-se à organização do conteúdo de um armário de carvalho recentemente herdado, que um bisavô mandara fazer por medida, para o seu novo lar de casado. Através de livros com trechos sublinhados, um caderninho que serviu de diário, fotografias e maços de cartas, será reconstituída a história desse antepassado, o sério e diligente Álvaro Amândio, bem como a da sua esposa, a bela e melancólica Madalena Brízida, marcada pela fama de perdulária, falsa, ladra, adúltera, má mãe e presumível assassina.
No presente da protagonista, que se vai estendendo por um período de cerca de um ano e meio, acompanhamos aos seus esforços para continuar a mover-se no tempo e no espaço das pessoas sem cancro. Além da “aprendizagem dos rituais” impostos pela doença e respectivos tratamentos, é preciso lidar com uma miríade de perguntas, gestos condescendentes, comentários sussurrados, recomendações bem-intencionadas de livros ou sites de qualidade altamente variável, e até insinuações de culpa no desenvolvimento da própria doença. Tudo isto é pontuado pela descrição de sonhos e recordações de um amor perdido, acentuando a mágoa da perda do futuro projectado. Porém, as ocasiões em que se sente mais viva são aquelas em que mergulha na correspondência que os bisavós trocaram entre si e com as tias – as quais também intervêm na intriga. No meio das sombras e da pequenez que lhe parecem uma herança de família, a protagonista desvenda um segredo capaz de lançar uma nova luz sobre o passado, fazendo jus à ideia de que o tempo é “um recorte de momentos, uma coleção de retalhos cheia de emendas e intervalos”.
Apesar dos lampejos de esperança, a representação da doença que aqui encontramos não é propícia a injectar optimismo em quem aprecia histórias motivadoras de superação. Em vez disso, o que a autora – que teve realmente um cancro – nos oferece nesta obra magistral, vencedora da edição de 2016 do Prémio Literário João Gaspar Simões, é um desafio ao tabu da nossa mortalidade, retratado num confronto pungente entre a vontade de viver que concebe futuros e o poder da morte para os aniquilar.
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