“A vida sem paixão é sobrevivência.”
Beijos: “toque de lábios, pressionando ou fazendo leve sucção, geralmente em demonstração de amor, gratidão, carinho, amizade”. Assim definidos no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, os beijos representam dos actos mais íntimos, emocionais e comprometidos entre duas pessoas. Imaginemos o fechar dos olhos, o toque, as terminações nervosas à flor da pele, um torvelinho de sensações. Se, à parte física, adicionarmos um momento de antecipação, um olhar cúmplice e a aproximação dos rostos, a dopamina começa a fazer das suas, com a tensão arterial e a pulsação aceleradas.
Em “Os Beijos”, (Alfaguara, 2022), Manuel Vilas pega em duas personagens – dois seres maduros – e coloca-as nos arredores de Madrid, ambas lutando contra a desesperança ditada pelas respectivas vidas e por um vírus que a todos impôs restrições, alheio a hierarquias, sociais ou outras.
O protagonista é um professor de quase 60 anos, acabado de ser reformar, procurando gerir a súbita paragem na vida profissional, evitando sentir-se decrépito, especialmente quando corpo e mente se apresentam em dissonância, cada um evitando ficar refém do outro. Salvador, assim se chama o personagem, lida com uma súbita remissão do corpo e da mente numa altura em que a ameaça de isolamento colectivo se abate sobre todos, como se a natureza se revoltasse contra os seres humanos e, em especial, contra si, diminuindo-lhe a liberdade. Contidos por uma humanidade doente, sujeito e colectivo desenvolvem diálogos interiores sobre si e sobre os outros, sobre a existência individual e a (ir)relevância do social. Nesta caminhada, ambos procuram inventar culpados, porque um mundo sem culpados não parece possível, tornando a inteligência refém da falta de humildade.
O livro de Manuel Vilas é um bailado entre o amor e a natureza. Um ensaio de esperança, assente na premissa de que a vida só faz sentido se não tivermos medo de enfrentar a insanidade, de a sentir através de olhares, beijos e toques que transportam alguma loucura para o centro da existência. Uma loucura saudável, que a nada obriga para além da aceitação da existência. Uma exaltação que evoca o desejo de viver sem perder a fé. No caso, Salvador passou a ter fé em Montserrat, que conhece na mercearia onde se abastece, com a qual embarca num carrossel de amor e de desejo.
“O presente é como uma espécie de gladiador que cortou a cabeça ao passado e que espetou a espada no coração do futuro. O passado não tem cabeça e o futuro não tem coração.”
Numa contemporaneidade desprovida de heróis, o protagonista une-se a uma mulher como uma réstia de esperança relativamente ao futuro, uma forte carga simbólica que evoca a memória e o presente, a história de um homem e de um país, individual e coletivo padecentes de Eros.
“A intimidade são os dedos dos pés, as pernas, os joelhos, os dentes, o rabo, os olhos assustados, a cara sem maquilhagem, as mãos com unhas desiguais, é isto a intimidade, um corpo sem embalagem, sem embrulho, sem caixa, sem preço.”
Depois dos dois primeiros romances, “Em tudo havia beleza” e “E, de Repente, a Alegria”, livros dedicados ao amor de família, Manuel Vilas explora agora um outros território do afecto: o amor romântico. A narrativa é provida de detalhes sobre o corpo e o pensamento de um homem e de uma mulher, mutuamente complacentes e amparados. Emocionam-se, saem de si com corações cheios de benquerença, numa verdadeira acção de resgate das respectivas vidas.
“Não há grande coisa a lembrar quando não amaste a vida.”
Numa época de distanciamento, medo e trevas, Manuel Vilas continuou a acreditar que o amor é importante na vida, assumindo-se como um profissional literário do mesmo, numa narrativa que procura continuar a ver beleza no mundo, defendendo um território humano contra a angústia, convidando a deixarmo-nos emudecer com “Os Beijos”.
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