Para os leitores que esperaram tranquilamente pelas edições traduzidas, pode dizer-se que o primeiro livro de Gillian Flynn publicado em Portugal – o seu terceiro – foi, como se costuma dizer com algum gozo e sarcasmo, para meninos. É certo que “Em Parte Incerta” – adaptado ao grande ecrã por David Fyncher – tem doses industriais de paranóia e violência, oferecendo como bónus uma cena de tortura capaz de dar a volta até mesmo aos estômagos mais calejados. Porém, se formos recuando na linha temporal, este terceiro livro deverá será encarado como uma espécie de evil light.
Antes disso houve “Lugares Escuros” – também com uma adaptação recente ao cinema -, que começava com uma frase que mostrava desde logo o território tenebroso em que se move o mundo de Gillian Flynn: “Tenho uma ruindade dentro de mim, palpável como um orgão. Cortem-me a barriga e provavelmente ela escorrega cá para fora, escura e carnuda, e cai no chão e alguém a pisa.” No princípio, porém, houve um livro chamado “Objectos Cortantes” (Bertrand Editora, 2015), uma estreia literária feita de arrepios, uma tensão arterial elevada e o mal à solta que, depois da edição em 2007, tem agora finalmente tradução portuguesa.
O livro tem como protagonista Camille Preaker, uma jornalista sem grande brilho, recém-chegada de um internamento num hospital psiquiátrico. Quando surge o caso de um homicídio de duas jovens na pequena Wind Gap, estranguladas e com todos os dentes arrancados, Camille vê-lhe atribuída a missão de deixar Chicago e regressar à sua terra natal, convidando todos os fantasmas da sua infância a regressarem para um tremendo ajuste de contas.
Há muitos anos que Camille mal fala com a sua mãe, uma mulher neurótica, rica, prepotente e que vive num estado de hipocondria permanente. Ou com Amma, a meia-irmã que mal conhece e que, com apenas treze anos, vive uma vida onde o sexo e as drogas são companhia habitual. Instalada no seu antigo quarto na mansão vitoriana da família, Camille começa a identificar-se com as vítimas. Na falta de grandes pistas, Camille perceberá que a raiz para esta aparição do mal poderá estar escondida num passado a que não gostaria de regressar. Mas conseguirá sobreviver antes de ter tempo de entrar na máquina do tempo e das recordações?
Nesta estreia arrepiante, Gillian Flynn mostra toda a sua paixão pelo lado sórdido da vida, seja através da violência pura – “Lembro-me de sentir essa palavra pesada pesada e ligeiramente pegajosa sobre o meu osso púbico. A faca de carne da minha mãe. Cortar como uma criança ao longo de linhas vermelhas imaginárias. Limpar-me. Cortar mais fundo.” -, da sátira à vida alheia – “…pensei no desespero crescente que os Nash deviam ter sentido de cada vez que lhes aparecia uma criança sem pénis” – ou de uma sexualidade carregada de sombras, crua e sem qualquer pingo de romance – “Nessa noite, em casa, enfiei um dedo por baixo das cuecas e masturbei-me pela primeira vez, arquejante e nauseada.”
História sobre a imperfeição humana e o negrume que habita em cada um de nós, “Objectos Cortantes” revela o desejo assumido que temos de que o mal não nos toque, mas que, esperançosamente, esperamos ver nascer na porta do lado, para que dele possamos falar como se o conhecêssemos desde crianças. Negro, original, desconcertante e aterrador, “Objectos Cortantes” é uma estreia magnífica. Veremos agora até que ponto da linha temporal Gillian deicidirá viajar no seu próximo romance.
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