“A amizade, tal como a imortalidade da alma, é uma coisa demasiado boa para ser verdade”. As palavras pertencem a Ralph Waldo Emerson, e encaixam como uma luva – ou preâmbulo – em “Desamigados” (Tinta da China, 2021), livro de António Mega Ferreira que partiu da mutação dos afectos e da vertigem da amizades do faceboook para nos contar tudo sobre “desamigamentos célebres, que levaram mais tempo e foram bem mais dolorosos do que este golpe digital certeiro e irreversível”. Uma ruptura sentimental que poderá ter tido origem “num equívoco, num feixe de incompreensões, num feixe de incompreensões, numa luta de egos exacerbada, num episódio fortuito”. Seguindo a linha cronológica, conta-se aqui a história da ascensão e queda de 11 amizades que poderiam ter sido capas de revista, e que foram da pancadinha à facada nas costas.
Por falar em facada nas costas, diz-que que Bruto atestou em Cesar 23 punhaladas, apesar de logo à segunda a coisa ter ficado resolvida. Com “uma ambivalência que intriga os biógrafos e apaixona os romancistas”, Bruto teve, entre outras coisas, de aturar os avanços de Cesar perante a sua mãe, mudando de lado consoante o vento até à ruptura final – que terá acontecido com o suicídio de Catão, que o tinha mostrado uma noção de ética incorruptível.
Quanto a Dante e Cavalcanti, a sua amizade floresceu na conturbada vida política e social da Florença da segunda metade do século XIII, partilhando a ideia do amor como o verdadeiro motor da poesia – e da mulher como o centro das preocupações éticas e metafísicas. A cisão partiu, talvez, das origens sociais – se Cavalcanti tinha como berço a elite aristocrática, Dante cresceu junto da burguesia remendada -, e de Dante se ter inclinado para o amor divino e de ver nele um exercício para a transcendência. Há quem defenda Cavalcanti como a Nêmesis de Dante, primeiro iluminando e depois assombrando o seu caminho. Dante que, no seu Inferno, colocou Cavalcanti no “lugar dos mortos condenados à expiação eterna”.
A expressão fazer correr muita tinta é perfeita para ilustrar, no caso de Voltaire e Frederico da Prússia, “a intimidade entre o monarca e o filósofo, bem como as razões e as peripécias do desamigamento posterior”, que resultou numa troca de correspondência que somou quase cinco centenas de páginas – além de ser o principal objecto das memórias de Voltaire que, talvez por ter tanto a dizer sobre o desamigamento, as deixou inacabadas. Um caminho que conduziu Voltaire do encanto eufórico ao despeito de peito aberto, e que, para Mega Ferreira, se tratou de um “casamento de conveniência, condenado a extinguir-se por conflito de interesses divergentes”.
Foi na “Lisboa anárquica e avacalhada do final do século XVIII, entre a demência da rainha D. Maria I e o poder tentacular de Pina Manique”, que teve lugar o momento em que dois “cromos” literários se distinguiram: Manuel Maria Barbosa du Bocage e José Agostinho de Macedo. Uma história de amizade, desamigamento e reconciliação, de duas figuras que partilhavam “o gosto marginal por meretrizes e a boémia”, divergindo “na manifestação dos talentos poéticos” – exuberantes em Bocage, modestos -embora ambiciosos – em Macedo.
Foi sob a sombra tutelar de Schopenhauer que floresceu a amizade entre Nietzsche e o casal Wagner. Nietzsche que, relativamente a Wagner, passou do maravilhamento inicial a considerá-lo uma encenação, autor de uma música que se tornou “uma espécie de gaiola distópica, da qual esforçadamente procurava libertar-se”.
Oscar Wilde foi um dos que teve a vida mais complicada, e tudo por causa da sua relação proibida – por lei – com Alfred Douglas. Depois de um célebre julgamento – a transcrição acaba de ser publicada na colecção Cadernos Negros da Guerra & Paz -, Wilde viu-se condenado a dois anos de trabalhos esforçados, um confinamento obrigatório no qual aproveitou para escrever uma belíssima carta de desamor, com mais de 150 páginas, onde olhou para lá do ideal grego que viu em Douglas e esmiuçou a relação – e em parte a si próprio – à lupa, com muito desencanto e amargura – “A minha submissão aos teus pedidos foi prejudicial para ti. Sabe-lo agora. Tornou-te muitas vezes ávido, por vezes até sem escrúpulos e sempre desagradável”. Mas, também, colocando-se no papel de artista-mártir: “Talvez eu fosse escolhido para te ensinar qualquer coisa de mais maravilhoso: o significado e a beleza do Sofrimento”.
Uma verdadeira batalha entre mentes foi a amizade entre Freud e Jung que, no seu 1º encontro – a acreditar nas palavras de Jung -, “conversaram durante 13 horas sobre vários assuntos não especificados”. Uma amizade que durou seis anos, acabando por divergir na questão da sexualidade e dos símbolos. Mais do que uma relação entre mestre e discípulo, foi uma relação entre pai e filho que azedou – não sem antes de fazerem da psicanálise um movimento.
A amizade entre Fitzgerald e Hemingway, dois vultos da literatura mundial, é talvez a história mais conhecida destas 11 amizades que deram para o torto – foi publicada no número 6 da Granta Portugal. Quando se encontraram pela primeira vez em 1925, Hemingway ficou espantado com a jovialidade de Fitzgerald, que julgava ser mais velho tendo em conta os seus escritos. As primeiras impressões de Hemingway foram péssimas, entre a acentuada hipocondria e uma tendência para o melodrama, mas apaixonou-se pela sua literatura. Diz-se que Fitzgerald se irritou com Hemingway por este o colocar nos seus livros, e que enviava – demasiadas – correcções a Hemingway, que assumia o desagrado mas acabava, quase sempre, por as levar em consideração. Hemingway que, de certa forma, tinha inveja de Fitzgerald, que escrevia pouco mas aparentemente sem esforço de maior, enquanto ele tinha de malhar até à exaustão. Uma relação da qual fez parte algum bullying, entre uma alma mais “mundana, sensível, insegura”, e uma outra de temperamento “impulsivo, ostensivamente viril, não poucas vezes rude e brutal”.
E o que dizer da amizade entre Vladimir Nabokov e Edmund Wilson, regada em solo americano, que teve como grande motor a música de Pushkin? Wilson destacou-se na crítica literária e na crónica jornalística, e tinha posições políticas assumidamente pró-soviéticas e anti-capitalistas. Quando chegou à América, Nobokov trazia com ele 10 romances e 5 colectâneas de poemas, tudo em russo, e terá sido um primo seu a pedir-lhe trabalho junto de Wilson, que sabia ler russo. Diz-se que, durante vinte e cinco anos, foram os melhores amigos do mundo, e acabou por ser um romance alheio – “Doutor Jivago”, de Boris Pasternak – a iniciar a rota de colisão, que culminou com uma crítica arrasadora de Wilson a uma tradução de Nabokov do livro “Eugénio Onéguin”, de Pushkin. Às 222 páginas da tradução de poemas, Nabokov juntou-lhes outras 1600, com notas e extras. Nunca é boa ideia colocar dois galos no mesmo poleiro.
Animada foi também a relação entre Albert Camus e Jean Paul Sartre, que se entenderam “em torno de uma consciência partilhada do absurdo da vida, de uma sensibilidade comum ao sofrimento dos desfavorecidos, de uma semelhante resistência ao horror do nazismo”. Um estado de graça que chegou ao termo por questões políticas, mas sobretudo por divergirem sobre a ideia de liberdade.
A fechar temos a amizade entre García Marquez e Vargas Llosa, que floresceu em Barcelona durante o boom da literatura hispânica, na viragem dos anos (19)60 para os (19)70. Uma “afinidade de gostos e coincidência de relutâncias” que conheceu um final abrupto, que tem valido uma série de conjecturas ao longo do tempo (nunca totalmente desvendadas). Diz-se que poderá ter acontecido devido aos avanços de um em relação à mulher do outro, envolvendo mesmo algumas cenas de pugilismo. Com amigos destes…
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