“A história de uma família assemelha-se mais a uma carta topográfica do que a um romance, sendo a biografia a soma de todas as eras geológicas que atravessámos. Escrevermo-nos a nós significa recordar que nascemos com raiva e fomos uma corrente de lava densa e contínua, antes que a nossa crosta endurecesse e se rachasse para deixar aflorar uma espécie de amor, ou que a força inútil do perdão viesse polir-nos e aplanar todas as nossas depressões. Relermo-nos a nós mesmos significa inventar aquilo por que passámos, identificar cada estrato de que somos compostos: os cristais de alegria ou de solidão no fundo, as consequências de uma memória que se evaporou, tudo aquilo que foi escavado e depois inundado, unicamente para nos darmos conta de que não é verdade que o tempo cure: há uma fratura que nunca será preenchida.”
Classificado, nas palavras da própria autora, como um romance de consolação e romance-mapa, “Sempre Estrangeira” (Dom Quixote, 2020) é uma tentativa de narrar e reler o passado. E, tão difícil como o passado, será o emprateleiramento deste livro, aspecto que o torna único e tão bom de ler e reler. Por um lado, pela quantidade de frases belíssimas e tão bem compostas; por outro, pelas conclusões tão habilmente tecidas – e que a tanto são transversais. Outro detalhe viciante é a dificuldade de encontrar um fio condutor, o que facilita poder abri-lo em qualquer capítulo e lê-lo quase como um livro de contos. Embora, mesmo chegando ao fim, fiquemos na dúvida sobre tudo o que lemos e o próprio mapeamento familiar. Resta-nos – e não será pouco – deleitarmo-nos com a singularidade da história, em torno do crescimento da própria autora.
“Perceber a razão por que terá renunciado a impor a sua língua privada não é difícil para mim, que tive medo de falar em voz alta durante tanto tempo: a língua gestual é teatral e visível, expõe-nos continuamente. Torna-nos de repente deficientes. Na ausência de gestos, pode-se parecer apenas uma rapariga um pouco tímida e distraída. (…) Parecia simplesmente uma imigrante cheia de erros gramaticais, uma estrangeira.”
Uma boa dose de loucura, realidades efabuladas, universos paralelos e relatos de várias fugas – e outras tantas lutas. Assim cresceu Claudia Durastanti, apoiando-se na auto-suficiência do irmão que, sem guias orientadoras, foi decifrando o que era preciso para crescerem e se articularem com o mundo exterior. Escapando, parcialmente ilesos, às dificuldades de um caminho pouco trilhado.
“Mas, quando penso nas semelhanças entre os meus pais nas tardes melancólicas e furiosas da sua adolescência, ambos isolados, pondero a hipótese de que o encontro entre duas pessoas não tenha tanto a ver com a predestinação, mas com um mapa biológico que se revela ao apaixonarem-se uma pela outra; descobrindo-se que havia uma inteligência primitiva a governar os nossos corpos e a libertar particulares elementares para o ar antes mesmo de nos encontrarmos.”
“Sempre estrangeira” vai encaixando, de episódio em episódio, o friso cronológico desses destinos, com os quais se pretende relatar a vida desta família tão peculiar e estrangeira. Estrangeira e até “deficiente”, entre eles mesmos e na sua relação com os restantes. Uma família de imigrantes, de gente que se opôs também a catalogações, não tanto pelo fardo da imigração, mais pelo condicionalismo da surdez. E, no meio de tudo isto, cresce uma rapariga, dividida mas não segmentada; livre mas com raízes, tornando-se uma pessoa plena de criatividade – prova disso é este livro indomável, pronto a esmiuçar as diferentes versões que habitam a história de qualquer família.
Já o leitor, rapidamente se esquecerá de querer domar seja o que for entre capítulos, navegando simplesmente pelo brilhantismo daquilo que, na peculiaridade desta família, se diz sobre as famílias de todos nós, revelando ainda mais a mestria da autora que, de algo tão caótico, foi capaz de sintetizar e de recriar, tão habilmente, aquilo que, tantas vezes – nem mesmo adornando -, somos capazes de revelar. Como escreveu Ursula K. Le Guin, “uma coisa é ler sobre dragões, outra é encontrá-los”.
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