O sueco David Lagercrantz era já um escritor conceituado no seu país quando aceitou o convite para dar continuidade à popular saga “Millennium”, após a morte de Stieg Larsson. Tendo assim conquistado a celebridade além-fronteiras, lança agora “Obscuritas” (Porto Editora, 2021), o primeiro volume de uma nova série policial onde apresenta a sua própria dupla de investigadores.
A narrativa começa em 2003, na Suécia, quando um refugiado afegão, árbitro de futebol, é assassinado após um jogo. A polícia detém um suspeito óbvio, mas precisa de uma confissão que tarda a obter. O chefe, ansioso por mostrar iniciativa, contacta um conterrâneo que é professor de psicologia numa prestigiada universidade norte-americana e que colabora com a polícia de São Francisco. Trata-se de Hans Rekke, especialista em técnicas de interrogatório, famoso por detectar “contradições e lacunas nos depoimentos como ninguém”. Acontece que, infelizmente para os agentes desejosos de encerrarem o caso, Rekke encontra mais problemas no trabalho da polícia do que no depoimento do suspeito.
Entre os agentes que se reúnem com Rekke encontra-se Micaela Vargas, uma jovem de origem chilena, filha de opositores ao regime de Pinochet, que cresceu num subúrbio habitado por refugiados de vários cantos do mundo. Sendo uma mulher de tez morena num meio maioritariamente masculino e escandinavo, não partilha os enviesamentos dos colegas e faz perguntas que nem lhes ocorre. Vendo o seu trabalho, tantas vezes desprezado, valorizado por Rekke, Vargas deixa-se fascinar pela personalidade dele, embora se ressinta da disparidade entre ambos: Rekke nasceu rico, vive numa mansão, tem uma família perfeita e toma o respeito de todos por garantido, enquanto ela precisa de se esforçar por abrir caminho pela vida, defrontando-se com múltiplos preconceitos e discriminações.
Porém, passados vários meses, quando Micaela o reencontra, a situação de Rekke é bem diferente: insatisfeitos com o seu comportamento insubmisso, os serviços secretos americanos, que esperavam a sua ajuda nos interrogatórios a presumíveis terroristas, fizeram com que perdesse o emprego e adquirisse fama de psicologicamente instável, tendo a fachada da vida harmoniosa ruído pouco tempo depois. Micaela salva-lhe a vida e anima-lhe o espírito, levando-o a retomar a investigação ao homicídio do árbitro. Rekke sofre, de facto, de um transtorno bipolar, mas isso não afecta as suas extraordinárias capacidades de observação e de dedução. Juntos, descobrem como esse crime, que parecia fruto de um mero impulso, está associado a eventos ocorridos no Afeganistão, desde o tempo da ocupação soviética à perseguição dos talibãs aos intérpretes de música clássica ocidental.
Mesmo que o autor não assumisse que Sherlock Holmes e o Dr. Watson foram os heróis da sua infância, seria notório o quanto Rekke deve a Holmes, não só intelectualmente, mas também ao nível dos hábitos que contribuem para caracterizar cada personagem, com o violino a ser aqui substituído pelo piano e os estupefacientes vitorianos a darem lugar a combinações indescritíveis de drogas e medicamentos. Vargas está mais distante de Watson e é uma personagem mais rica do que este. Os mistérios insinuados no seu passado familiar, juntamente com a complexa personalidade de Rekke e a maneira como este livro intrincado termina, com o início de uma outra história, fazem-nos ansiar pelo próximo volume.
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