Em 1859, uma publicação chamada Annual of Scientific Discovery descreveu casos de indivíduos que ficaram com marcas de “carácter arborescente” após encontros com relâmpagos. Silas Bird, protagonista de “Pónei” (Gailivro, 2021), de R. J. Palacio, ficou com a imagem de um carvalho impressa nas costas, mas não é só isso que o torna invulgar. Mais marcante é a sua capacidade de ver e ouvir espíritos. Órfão de mãe à nascença, foi criado de forma peculiar pelo pai, um génio a quem a pobreza limitou os futuros possíveis. Aos doze anos, pequeno para a idade, após algumas experiências de socialização que não correram da melhor maneira, Silas vive em relativo isolamento com o pai, o cão Argos e um único amigo chamado Mittenwool, em pleno Oeste americano do século XIX.
Uma noite, o mundo que Silas conhece é “virado do avesso” pela visita inesperada de três cavaleiros. Ele não sabe, mas o pai, que vê trabalhar como sapateiro e fotógrafo amador, foi outrora um falsário famoso, e os desconhecidos pertencem a uma quadrilha que deseja recrutá-lo. Perante a violência iminente, o homem aceita acompanhá-los, deixando o filho para trás, na esperança de protegê-lo. Mas o pequeno cavalo que o trio trouxera para Silas montar aparece-lhe à porta de casa na manhã seguinte, e a criança decide partir nele ao encontro do pai, qual Telémaco em busca de Ulisses.
Assim começa uma viagem iniciática que se assemelha a um conto fantástico tradicional, onde não falta uma floresta assombrada que é imperioso atravessar, nem personagens secundárias pitorescas, vivas e mortas, que vão ajudando o protagonista ao longo do percurso, o qual determinará o fim da sua infância.
Convém explicar que Mittenwool, o amigo que o acompanha desde sempre, é um fantasma de aparência adolescente e comportamento muito humano, que discute e amua, mas nunca desiste de tentar ajudar. Também o cavalo, ao qual chamam Pónei, aparenta possuir características sobrenaturais, trotando como se flutuasse e agindo como se lesse pensamentos. Silas reconhece toda esta estranheza, mas aceita-a pragmaticamente, admitindo que “se a vida está repleta de mistérios, a morte também deve estar”, e que “quando as coisas ultrapassam a racionalidade, tendemos a não fazer grandes perguntas”.
Tal como ele, somos levados a suspender a descrença e a seguir o curso dos acontecimentos, pois a narrativa está muito bem construída, com diálogos vivos, acção envolvente – não falta um tiroteio típico do velho oeste – e revelações guardadas para o fim. O cruzamento de temas como o desenvolvimento da fotografia e o espiritualismo contribuem para tornar a obra difícil de classificar: não é propriamente um romance histórico, nem literatura fantástica, nem realismo mágico ao estilo sul-americano. Talvez possa ser descrita como uma história que se desenrola numa época passada e transcende aquilo a que a maioria de nós chama realidade. Acima dos elementos sobrenaturais e históricos, destacam-se representações tocantes de amor e amizade, “fios invisíveis” que nos unem e dão vontade de reler o livro para apreciar melhor todos os pequenos pormenores maravilhosos.
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