A família de W.G. Sebald está ensombrada, à semelhança de muitos compatriotas, pela influência nociva do Terceiro Reich. No pós-guerra, aquando dos julgamentos aos crimes lesa-humanidade do regime nazi, o jovem Sebald reconheceu, nos acusados, semblantes que fizeram parte da sua infância. Por vezes polémico, nunca deixou de criticar a cultura de rememoração imposta pela “indústria do holocausto”, no contexto de uma sociedade alemã fugida de responsabilidades, cujo sentimentalismo mais parecia atrair um esquecimento precoce que imbuir a consciência geral com uma racionalização do horror da guerra.
A carreira académica encaminhou-o até à Universidade de East Anglia, onde leccionou. Pese as circunstâncias muito distintas das que motivaram as figuras da exilliteratur, tratou-se deum exílio que lhe igualou a escrita a algumas das figuras mais influentes da literatura. Munido de um intelecto invejável que aplicava na prosa, desafiou o conceito de romance ao fundi-lo com uma panóplia de vertentes literárias. Partindo de uma cultura germânica que se alastra ao mundo, “Campo Santo” (Quetzal Editores, 2014) junta dois momentos, sendo que o mais longo reúne artigos que respeitam uma ordem cronológica até à morte inesperada do autor num desastre de viação. Oferece, em traços gerais, um percurso em constante mutação enquanto ensaísta, analisando particularismos de nomes cuja vida e obra foram determinantes ao referido estilo amalgamo que remata “Austerlitz” ou “Os Anéis de Saturno”. Destes nomes, a saber os mais proeminentes: Nabokov, Kafka e Chatwin.
Não é nesse sentido, porém, que se baptiza a obra. “Campo Santo” remete aos reflexivos passeios a pé, sempre a pé como dita a lei do pensador, durante uma estada na Córsega. Numa primeira parte, quatro breves textos são pautados pela singular forma de Sebald observar o mundo, pelo ensino, pela história, a tradição e costumes. Os textos de abertura seriam estudos para um romance em gestação. Embora não se deva especular como teria sido o resultado, resta-nos o travo a solidão, um debruçar sobre os costumes dos vivos ligados à morte, destacando-a entre os fenómenos culturais. Anunciava-se uma obra embelezada pela tristeza. Sven Meyer, editor alemão de Sebald, explica que na recta final (forçada) da produção literária do perecido, «já não se distingue o ensaísta do ficcionista». Nesse aspecto, a edição é cuidada e representativa da evolução, e a divisão da obra parece ser a opção mais sensata, dado que os textos de Córsega só fazem sentido num livro mais corpulento.
Em Discurso de admissão como membro da Academia Alemã, o último texto, conclui com uma realização inesperada, envolta na tristeza que não arreda pé, o pairar «ainda entre o sentimento de familiaridade e o de estar deslocado». O génio de Sebald manifesta-se numa simples premissa de lacuna constante. Restavam demasiadas perguntas por fazer, e não serão feitas da mesma forma. Encerra-se em “Campo Santo” uma brilhante meia-idade dos porquês.
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