A certa altura da edição deste ano do Folio – Festival Literário Internacional de Óbidos, a jornalista e escritora Isabel Lucas referiu o “trabalho extraordinário de descolonização da língua” feito pelos brasileiros. Um pouco como se, do outro lado do Atlântico, o português passasse a ter a musicalidade e o jogo de cintura da língua italiana – ou, usando uma imagem mais no comprimento de onda de uma Moda Lisboa, tivesse atirado com o corpete, o espartilho e a saia de armação às urtigas para arriscar, sem medo ou vergonha, uma lingerie com menos gramagem.
Nascida em Maio de 2017 pela mão dos amigos de colégio Fernanda Diamant e Paulo Werneck, a Quatro Cinco Um apresenta-se desempoeiradamente como “a revista dos livros”. Uma vez por mês, na sua edição física – que, por cá, pode ser comprada na Livraria da Travessa (Lisboa) -, apresenta ensaios, recensões críticas, um Listão com muitas das novidades editoriais que chegam ao mercado brasileiro e uma série de artigos que farão feliz o mais exigente e apaixonado leitor. Para além da edição em papel existe também um site, onde estão disponíveis conteúdos diferentes da versão em papel, desde reportagens e entrevistas a excertos de livros. Apesar de dar algum trabalho, a assinatura digital pode ser feita em Portugal, garantindo o acesso a todas as revistas já publicadas em versão facsimile.
Durante a sua passagem pelo Folio, o Deus Me Livro esteve à conversa com Paulo Werneck, jornalista, editor, curador da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) de 2014 a 2016 e director da revista Quatro Cinco Um, baptizada em nome desse romance intemporal e visionário assinado por Ray Bradbury (Farenheit 451 – a temperatura à qual o papel pega fogo). Uma revista que é, diga-se em bom português, supimpa.
A Quatro Cinco Um chegou a Portugal em Maio de 2018, cerca de um ano depois da sua estreia no Brasil. Passados três anos, como tem corrido a aventura transatlântica?
Temos enfrentado as dificuldades da circulação de material impresso entre Brasil e Portugal, um problema absurdo e persistente. Editores ainda transportam livros (e revistas) na mala, não há bons canais de distribuição e exportação. Mas algumas alternativas vêm surgindo e agora vamos iniciar uma segunda fase, com distribuição mais profissionalizada, em quiosques. Fora isso, ainda temos muito a crescer na circulação digital, por meio do site. O podcast 451 MHz, da Quatro Cinco Um, vem tendo crescimento de audiência em Portugal.
Aproveitando a viagem ser de ida e volta, conta-nos como está a vida da revista no Brasil e qual o estado de saúde do mercado editorial e das livrarias independentes.
O mercado editorial brasileiro está em crise desde 1808, quando a imprensa passou a ser permitida no país pela Coroa portuguesa. O editor é um empreendedor apaixonado, que faz apostas até mesmo em contextos de adversidades e que é obrigado a desenvolver estratégias de guerrilha para sobreviver. Isso traz inovação, projectos, energia, apesar de todos os aspectos negativos. Enfrentamos a falência de livrarias, concentração de mercado, abandono de políticas públicas e a concorrência de novas formas de entretenimento como as séries, que embora muitas vezes sejam inspiradas no universo literário representam uma perda gradual de atenção por parte do leitor.
Brasil e Portugal estão literariamente mais perto do que há uns anos atrás? O que tem mudado nesta relação amorosa – e por vezes atribulada – de longa data? A julgar pelas duas últimas edições do FOLIO, o casamento está para durar.
O Folio amadureceu a olhos vistos, mas a literatura brasileira me parece ter sido desde sempre um ingrediente do festival. Isso é muito saudável, expande o horizonte e coloca autores, editoras e leitores em diálogo.
Se fosses vendedor porta a porta, como apresentarias a revista antes de correres o risco de ter a porta fechada na cara?
Sou vendedor de porta a porta.
Tens alguma ideia de quem são os leitores da Quatro Cinco Um?
Não conheço muitos detalhes, mas sei que são pessoas obcecadas por livros, que vão morrer na condição de leitoras. São pessoas cuja sociabilidade, cuja vida profissional e afectiva passa pelo livro. Como disse um amigo, o homem é o único animal que compra mais livros do que é capaz de ler. Esse é o nosso leitor.
Li algures que se assumem como “uma revista de esquerda liberal”. A política faz parte da revista, ou influencia de alguma forma a linha editorial?
A política faz parte de tudo. Isso não significa que sejamos uma revista política, partidarizada. De modo algum. Mas lidamos com uma vasta pauta de direitos humanos, por exemplo, e num país desigual como o Brasil não podemos ser insensíveis a esse tema, tradicionalmente associado ao progressismo.
Como põem de pé um número da Quatro Cinco Um, entre a escolha da capa, os artigos de destaque, entrevistas e aquilo que é atirado para o Listão?
Trabalhamos em muitas edições ao mesmo tempo: estamos sempre em diferentes fases da produção de diferentes edições. O desafio é compor um mix interessante e variado.
Onde é possível comprar a revista em Portugal? E está de pé a assinatura digital?
Actualmente, na Livraria da Travessa em Lisboa, mas em poucas semanas estaremos em alguns quiosques. É possível assinar o site, mas o processo de assinatura ainda precisa melhorar. Estamos voltando nossas energias para isso neste momento.
Se recorreres ao castelhano, achas que poderás passar pelo professor da Casa de Papel?
Já fui abordado na rua por causa dessa semelhança. O que me faz pensar que estou no ramo de negócios errado. Meu próximo projecto é uma acção literária na Casa da Moeda.
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