“Foi o acaso que decidiu o meu encontro e a minha amizade com Moebius. A força que nos levou a criar em conjunto a nossa obra de banda desenhada era, sem qualquer dúvida, mágica.”
As palavras pertencem a Alejandro Jodorowski e falam da sua relação com Moebius, que conheceu quando, ao trabalhar em “Dune” – provavelmente o melhor filme da história do cinema que nunca o chegou a ser -, tentava cumprir o desejo de contar com Moebius para desenhar o guarda-roupa e Jean Giraud para desenhar o storyboard – descobrindo que um e outro eram, afinal, a mesma pessoa. Moebius acabou por trabalhar com Jodorowski na nunca cumprida adaptação literária de “Dune” – vejam o bem desenhado documentário “Jodorowski`s Dune” -, tendo desenhado mais de 3000 esboços em dois anos antes do seu cancelamento – e de a depressão ter tomado conta de boa parte dos envolvidos.
Depois de algumas colaborações entre ambos, a certa altura surgiu uma nova colecção com o selo da revista Humanoides Associés, que despertou a curiosidade de Jodorowski. O projecto tinha a ver com uma nova colecção lançada em pequenos volumes, em tiragem limitada, baptizada de Mistral, onde cada um dos livros vinha com a seguinte menção: “Esta edição não pode ser vendida. É oferecida gratuitamente a todos os fiéis dos Humanoides Associés”. Apesar de se tratar de uma colaboração não paga, Jodorowski decidiu apresentar a Moebius “Os Olhos do Gato” (Arte de Autor/A Seita, 2021), a história de um pequeno rapaz cego. Apesar de achar a história fascinante, Moebius referiu que a coisa se resolvia em cinco páginas, o que estava longe da meta das obrigatórias 25 páginas. A solução passou, então, por atirar com a narração tradicional às urtigas: ao contrário da organização por vinhetas, apresentou-se a história como “uma sequência de ilustrações tão solitárias como a criança e o gato, e cada vinheta ocupará uma página inteira” – palavras de Jodorowski. O projecto ficou fechado e os livros foram distribuídos gratuitamente, mas no mercado negro a coisa acabou por chegar aos 300 euros actuais, além de ter havido uma edição pirata a circular bem diferente da dos cadernos dos Humanoides.
A técnica usada por Moebius neste “Os Olhos do Gato” foi a do recurso a tramas mecânicas, como tinha usado anteriormente em “La Déviation”, tendo como resultado um preto azulado e pontilhado. O mais difícil, segundo ele, foi desenhar o gato, claramente inspirado na cultura do Antigo Egipto. Quanto à história, tem lugar numa cidade pós-apocalíptica, praticamente deserta, onde reina o abandono, a devastação, a ruína e a sujidade. É nela que, da janela de um alto edifício abandonado, um rapaz orienta o vôo da águia Meduz, numa prece onde se descobre um fio poético e que dá lugar a mil e uma interpretações.
Há um desígnio cinematográfico evidente, num contraste resultante entre o campo e o contracampo. De um lado, quase como que num flipbook em lume brando, acompanhamos a espera do rapaz por Meduz, vislumbrando a sua silhueta, as vestes compridas, a careca e as orelhas salientes; do outro tem lugar a vertigem, num balanço entre a ansiedade do miúdo e o jogo desigual do gato e da águia. Um mundo onde resta somente um frágil e incompleto espécime humano, a quem apenas resta brincar a ver, e para quem a crueldade tem um novo significado.
Esta edição, que resulta de uma parceria entre A Seita e a Arte de Autor, tenta captar o espírito da edição original, que foi então de 500 exemplares, servida com lombada de pano e impressão sobre papel amarelo – aqui, a edição é em capa dura e papel amarelo. Como curiosidade, e indo ao encontro dos caminhos acidentados que esta dupla conheceu, diga-se que “Os Olhos do Gato” se transformou numa história de culto, tendo os originais dos desenhos de Moebius acabado por ser, inadvertidamente, deitados ao lixo durante um casamento. Quando Jean-Pierre Dionnet contou a Moebius, muito a medo, sobre o sucedido com os seus desenhos, recebeu um sorriso, um abraço e estas palavras: “É fantástico! Dessa maneira, eles não pertencerão a ninguém senão a nós dois”. Felizmente, a história tratou de provar o contrário.
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