“Na Pele de uma Jihadista” (Objectiva, 2015), assinado com o pseudónimo Anna Erelle, é um relato na primeira pessoa que se lê como ficção. De facto, até desejamos que o fosse mas, como alguém disse um dia, a realidade é mais estranha e, neste caso, mais assustadora do que a ficção. Trata-se da narrativa de uma jornalista francesa dos bastidores da reportagem que lhe valeu uma fatwa, do processo aterrador da sua entrada no mundo do Estado Islâmico. A identidade da jornalista permanece em segredo e não é preciso avançar muito na leitura para perceber porquê: o seu acto de coragem imensa é também um acto de loucura necessária que Anna assumiu, no fundo, para o bem comum. Todos ouvimos e lemos as “histórias” relacionadas com o Estado Islâmico, mas Anna entrou no covil do leão e saiu de lá com um relato arrepiante, um abre-olhos vital para as camadas ocidentais acomodadas que não imaginam o alcance desta organização fundamentalista.
Anna, a jornalista ocidental, assume a identidade da ingénua Mélanie para investigar os meandros da rede de recrutamento do Estado Islâmicoc que já seduziu tantos jovensc e sai-lhe a “sorte grande” na figura de Abu Bilel, um jihadista numa posição de poder. Quando dá conta, Bilel está determinado em trazer a jovem Mélanie para a Síria, para o seu mundo violento, para fazer dela a sua mulher e dar-lhe uma vida de acordo com os princípios que advoga como sendo os verdadeiros. E assim, num repente, começa uma viagem vertiginosa que nos deixa com o estômago feito num nó durante todo o livro. O processo de recrutamento de Mélanie é insidioso, feito com uma facilidade assustadora usando as ferramentas imediatas e acessíveis que a Internet coloca ao dispor de qualquer um, uma lavagem cerebral e emocional que lembra uma caçada e que nos faz compreender o que leva tantos jovens ocidentais a deixar tudo para trás e a entregar-se ao fundamentalismo.
A jornalista assume então o papel de presa, de gazela indefesa, e mergulha num exercício esquizofrénico para compreender e denunciar, para se infiltrar o mais possível na rede, expor os seus meandros e chegar à verdade. O livro é o retrato desse exercício perigoso, dessa viagem de transformação e dos sentimentos da autora, num relato extremamente pessoal e íntimo que, além de cumprir uma função informativa, permite ao leitor viver a experiência de tão de perto que sente o medo, a claustrofobia, a tal esquizofrenia imperativa para caçar o caçador.
A coragem de Anna é dupla: tem coragem jornalística para escrever o artigo e tem a coragem pessoal para contar a sua história, revelando tudo. Se um artigo faz mossa, um livro tão intimista é uma pedrada no charco; terá porventura a capacidade de tocar mais o leitor, de o sensibilizar de uma forma mais real para uma realidade que não está só lá “longe”, no Médio Oriente, mas que já criou raízes no Ocidente. Uma realidade que se aproveita das fragilidades sociais da Europa para recrutar mentes moldáveis, vulneráveis. De facto, pode-se dizer que põe também a bola do nosso lado. Se por um lado a mente adolescente ou jovem adulta é naturalmente influenciável, uma mente jovem criada numa Europa que devora os seus através da desigualdade social e da falta de redes de apoio será um alvo bem mais apetecível. Basta oferecer o que lhes falta.
Uma leitura pesada , que não faz reféns nem prisioneiros, mas uma leitura necessária para tirar a venda ao mundo ocidental e perceber as ramificações e as estratégias de uma organização terrorista perigosa e mais presente e próxima do que julgamos. É, acima de tudo, um acto de coragem admirável da parte de uma mulher que, em vez de temer (o que seria totalmente compreensível), avança apesar de todos os riscos e que paga por isso com um anonimato forçado e uma fatwa. Apesar de estarmos no verão e só nos apetecer ler algo levezinho, talvez fosse proveitoso ler este livro e perceber que, no Ocidente, se vive um estado de silly season quase perene, em que as massas não têm noção dos cancros que se vão criando no ventre da Europa, e que é preciso acordar da sesta auto-imposta. Agradeçamos a Anna pela sua coragem e por este livro que nos aproxima das vítimas desta realidade aterradora e dos valentes que a denunciam.
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