“Passei cerca de quinze anos a anotar estes textos sem muito destino, abeirando-me de cada um lentamente como quem regressava a uma casa. Não podia fazê-lo sem lidar com o medo e com a esperança. Escrever sobre mim, depois de afirmar que a minha vida não daria um livro, era afinal tão irresistível quanto necessário para cumprir a tarefa de me rever e ajustar. Não para garantir que melhoraria, à promessa de menino ou à comoção repetida, mas para chegar mais próximo de me suportar e, essencialmente, suportar a contingente distânciia a que estão os outros e a incapacidade de nos comunicarmos e entendermos.”
No ano em que o mundo se tornou num lugar ainda mais estranho, propenso ao isolamento, à reflexão e a algum desencanto, Valter Hugo Mãe trocou as voltas ao romance e publicou “Contra Mim” (Porto Editora, 2021), uma espécie de biografia feita de fragmentos da sua infância e adolescência. Uma viagem pessoal e transmissível, na qual o leitor terá acesso a um lugar que, normalmente, o escritor deixa de fora da sua obra – ou que apresenta muito bem embrulhado.
São muitos os episódios partilhados com o leitor (e as personagens da sua vida): o lamento de não ter fotos da sua mãe – uma “fidalga de cristal” segundo a tia – prévias ao seu casamento, daquele tempo “aberrante e inútil que os adultos de outrora abreviavam a todo o custo”; o pai, o Jorginho dos Chascos, “um jovem inteligente, cheio de informação, educado para prestar atenção a tudo ao mesmo tempo e ter paciência”; a noção, ganha em criança, da forte probabilidade – e receio – do desamor, do abandono e da violência; o instante da primeira memória ligada ao 24 de Abril de 1974, ao momento “em que se inventou o Portugal do futuro, o único que se propõe à decência humana, o democrático, o único que posso aceitar”; os tempos do pai em África – Valter nasceu em Angola e veio com dois anos e meio para Portugal -, e a emigração como algo que faz parte do ADN da família; a infância feliz passada em Paços de Ferreira; o avô, “um ser feito das madeiras da cama e dos tecidos das mantas“, que sempre soube que o mundo de Valter seria afectivo; a violência na escola em Paços de Ferreira, onde as professoras “aleijavam as crianças, amaldiçoavam-nos com promessas de burrice e miséria para a vida inteira”; a ida à escola, onde aceitou “ser torturado em troca da ciência deslumbrante de aprender a guardar a fortuna das palavras”; a crença informal em Deus “por assombro e gratidão”, enquanto “criança de um desamparo tremendo no que à realidade dizia respeito”; o primeiro vislumbre da intimidade feminina aos seis anos – “Parecia-me, àquela luz e distância, uma rotunda pequenina com um chafariz no meio”; a morte prematura de Casimiro, o “irmão horizontal” que não chegou a conhecer; a certeza das palavras responderem à sua natureza, e a descoberta do tipo de amor que lhe estaria reservado – “Iniciei assim meu triste jeito no amor. Tive poucas dúvidas de que falharia por toda a vida”; as Caxias, “a praia onde, a partir de 1850, se terão instalado algumas famílias pobres descidas de A-Ver-o-Mar”; o café, que se tornou o trabalho da família, agora “evidentes devedores e credores de cada um”; “O Segredo do Castelo do Terror”, livro assinado por Alfred Hitchcock, que terá sido uma das primeiras leituras de Valter; a suspensão do compromisso com Deus, optando pela reza sem compromisso e a recusa de seguir “um caminho organizado”.
Um livro feito de relatos breves e de coração aberto, que permitirá aceder à linha temporal de Valter Hugo Mãe, conhecendo muitos dos lugares e personagens que o formaram enquanto homem e escritor. E que, depois de concluído, terá permitido a Valter regressar a uma motivação e certeza mais antigas: a de que haverá sempre beleza. E poemas.
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