Aviso aos mais de duzentos passageiros do voo Paris-Nova Iorque ou, é claro, aos potenciais leitores: “Todos os voos tranquilos se parecem uns com os outros, cada voo turbulento é turbulento à sua maneira”.
Hervé Le Tellier é o capitão deste voo turbulento, intitulado “A Anomalia” (Editorial Presença, 2021). Uma ponte suspensa entre o retrato da realidade actual e a sátira de um “novo normal”, no qual Tellier encaixou uma outra pandemia – uma que dura há bem mais tempo e que estende os seus tentáculos a quase todas as áreas da sociedade, ou seja, às nossas vidas individuais. O autor revestiu essa duplicidade com um ritmo alucinante – e igualmente caótico – para dar asas à sua visão, a qual assume ser pessimista. No entanto, o traço humorístico e de crítico social não põe de parte nenhum lado da sociedade e, entre mais de uma dezena de personagens, espelha uma diversidade humana que, embora diversa, anda perdida na busca pelo sentido da vida e do significado do que é isto de existir e para o que é que contribuímos. Tudo sem esquecer os temas que estão na berra, as personagens que ganham mais likes ou aquelas que se tornam ódios de estimação.
O resultado é um livro acelerado e inteligente, cheio de piscadelas de olho ao leitor, num ritmo nervoso e impaciente. Como se o zapping entre séries e trechos de filmes já vistos desse sentido a mais uma noite entediante, onde o scroll repetitivo entre perfis de redes sociais mostra mais do mesmo e não acrescenta valor. Antes exige o nosso contributo, com mais uma frase ou imagem, numa demonstração de empatia e tomada de consciência num assunto sobre o qual quase nada sabemos, mas do qual nos dizemos defensores. Para isso usa os media, os grandes nomes da política ou da religião, fazendo do comentador – um habitué de qualquer horário nobre – um moldador de perfis e de opiniões, e tecendo aí uma das suas maiores críticas – a de que a classe no poder infantiliza o seu interlocutor: “Matar uma pessoa não tem importância nenhuma. É preciso observar, vigiar, refletir – muito – e, no momento certo, aprofundar o vazio”.
Aprofundar o vazio será, por certo, uma frase chave sobre o enredo faseado e por camadas deste livro, no qual urge uma chamada de atenção enorme – e um alerta maior ainda – para a necessidade de resignificar as nossas vidas e de as orientar num sentido oposto ao que as últimas – talvez – duas décadas exigiram. É preciso observar, reflectir, agir efectivamente e avançar noutra direcção, seja pela oportunidade de uma duplicidade ou mesmo da reinvenção, acreditando que será no que amor que reside a resposta – e não na partilha oca de mais uma publicação nas redes sociais ou de um reconhecimento vazio por milestones criadas só para inflamar egos.
Trata-se de uma leitura que exige resiliência do leitor (e também aí há uma mensagem explícita), havendo por vezes a sensação de que Tellier escreveu uma serie de episódios, meteu tudo num saco e ficou na dúvida sobre qual seria a melhor sequência para os ordenar. No entanto não se duvida da sua sagacidade e mestria, conseguindo um todo lancinante, cru em algumas coisas, demasiado complexo e técnico noutras, com uma alternância de ritmo, personagens e acontecimentos ao sabor de um comando possuído por um monstro do zapping. No meio de tudo isto há também política, critica social, mestria nos diálogos, descrições ora acutilantes, ora superficiais – consoante a voz de mais de uma dezena de personagens.
É um enredo que desperta sensações, sejam de tédio ou de riso, conseguindo confundir o leitor até ao final, momento onde a absolvição por tanta e incessante estupidez chega pelo caminho mais óbvio: o do amor. Resta saber se basta o amor próprio ou se a cura só será completa pelo amor ao próximo: “Amar evita, pelo menos, que procuremos incessantemente um sentido para a nossa vida”.
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