Originalmente publicada entre 2006 e 2020 na editoria parisiense Dargaud, a trilogia “Lena” (Arte de Autor, 2021), composta por três bandas desenhadas originais – “A Longa Viagem de Lena” (2006), “Lena e as Três Mulheres” (2009) e “Lena em Pleno Braseiro” (2020) -, chega a Portugal com o selo da Arte de Autor, num volume em capa dura que nos apresenta a edição integral.
O álbum resultou de uma viagem a Berlim efectuada por André Juillard e Pierre Christin, a que se juntaram as fotografias, a documentação e as entrevistas realizadas por Pierre Christin nos diversos países pelos quais Lena vai passando. O resultado é uma série onde a ficção ganha contornos políticos, mergulhando em alguns dos acontecimentos e convulsões geopolíticas que marcaram a história do século XX e XXI. Tudo num registo de diário telegramático, salpicado com apontamentos poéticos onde reina a melancolia e a nostalgia.
“A Longa Viagem de Lena” serve para nos apresentar a Lena, uma jovem morena, elegante e sobretudo misteriosa, que parece apenas oferecer um vislumbre do tempo presente – de onde veio e para onde vai é algo que o leitor irá conhecer aos poucos, à medida que as geografias se vão sucedendo como numa série de postais. O ponto de partida é uma parte distante de Berlim-Leste, perdida entre bosques e lagos, onde viviam os velhos dignitários do regime derrubado. Após memorizar uma lista com o ar – e a extensão – de supermercado, seguem-se Budapeste, Kiev, Odessa, a Turquia e a Síria, onde cada um dos encontros partilha uma economia de palavras. Por esta altura, Lena tem o estatuto dividido entre ser um “activo precioso” e uma “pequeno-burguesa”, algo que será esclarecido depois de um inter-rail ao estilo de um romance de John le Carré, onde se questiona o desejo de vingança como forma de suprimir a impossibilidade da reescrita do passado.
“Na esperança de escapar ao passado” e de atirar com o presente às urtigas, Lena procura um novo começo na Austrália. Uma (falsa) pausa na vida de espiã que se vê interrompida pelo insistente recrutador Paul-Marie, que obriga Lena a mais uma mudança de identidade, de país e de rosto. O regresso faz-se por uma Geórgia perturbada e um campo de treino subsariano, antes de terminar num esconderijo parisiense, na companhia de três mulheres destinadas ao martírio, umas com mais dúvidas que outras, a quem Lena fica encarregue de ensinar tudo o que é necessário sobre o Ocidente. “Lena e as Três Mulheres”, segundo momento desta trilogia, vê nascer também uma máxima da poeira da luta armada: “Quando a guerra se torna terrorista, o combatente confunde-se totalmente com o seu combate…”.
A fechar a trilogia temos “Lena em Pleno Braseiro”, onde acompanhamos a complicada vida diplomática, numa conferência numa região perdida do norte da América com o ar de maratona sem meta à vista – isto depois de 68 dias a pisar ovos: “Partida empatada, sunitas furiosos, chiitas vexados, irredentismos locais vários e variados, actas contestadas. Será preciso recomeçar novamente”. Reunindo representantes de diferentes países (Irão, Turquia, Estados Unidos, Rússia, França, etc.), a conferência tem como objectivo discutir a crise do Médio Oriente, incluindo a Síria, que é aqui objecto de considerações geopolíticas. Lena é aqui mestre de cerimónias, com a missão de descobrir de onde poderá, a partir da intolerância, nascer a violência.
Com a política a servir de cenário e de alimento para a narrativa, “Lena” é uma história de perda e de reconquista em três actos, que atravessa, com muito lirismo e o traço bem distinto de André Juillard, diversas geografias e momentos da história humana.
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