Anos depois de ter criado, no Facebook, uma página de cartoons sobre as aventuras e desventuras da ilustradora Fiona e do seu gato Fera, aos quais se juntou mais tarde a gatinha Lucy, o trabalho de Sónia Cântara é publicado num livro intitulado “Fiona & Lucifera” (Ideias de Ler, 2021).
Segundo os dicionários, “lucífera” é algo que dá ou traz luz. Não sabemos se esta definição influenciou a escolha do nome para o par de felinos, mas o certo é que eles iluminam de um modo muito particular o dia-a-dia de Fiona, o alter ego da autora. Enquanto o Fera, um gato branco com nove anos e excesso de peso, obcecado por comida e com muito mau feitio, capaz de morder conhecidos e desconhecidos, entrou na sua vida decidido a transformá-la num inferno, a gatinha Lucy adicionou-lhe “três quilos de ternura”.
Através deles, a autora comenta com humor e ironia o estranho mundo dos humanos, das relações amorosas à paranóia das dietas, sem esquecer as redes sociais e a epidemia de covid-19. A dinâmica entre ambos, representada em cartoons independentes de uma ou duas páginas, consiste normalmente numa pergunta ou num comentário da Lucy, sempre tão fofinha e docinha que chega a parecer sonsinha, seguindo-se uma resposta mordaz do Fera, o mais perspicaz e inteligente da dupla.
Claro que a Fiona também está presente, debatendo-se com várias pressões sociais e dúvidas existenciais, além da dificuldade em ganhar a vida como ilustradora. Sem complexos, a autora assume que, em certa fase da vida, acabou por aceitar que nunca conseguiria sobreviver a trabalhar exclusivamente na sua área de formação, dominada por solicitações pro bono e prazos impossíveis de cumprir, tendo estes cartoons nascido da vontade de se divertir fazendo o que gosta, ao seu ritmo e sem pressões, com o humor negro necessário para se vingar daquilo que a irrita. Os felinos, que a “deixam viver lá em casa desde que não os incomode muito e lhes encha as taças de comida (da boa)”, ajudam-na a manter o ânimo, apesar dos pêlos espalhados por todo o lado e da ocasional destruição de objectos.
Mesmo que não o afirmasse, seria óbvio que a autora está habituada a conviver com gatos, pela maneira como representa os seus comportamentos. Com apenas três cores (branco, negro e vermelho) consegue criar uma grande variedade de expressões e posturas corporais, que tornam as ilustrações extremamente fáceis de ler e suscitam um sorriso imediato. O resultado é uma crítica social tão bem-humorada quando acutilante.
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