“O que nos separa dos outros por causa de um copo de whisky” (Dom Quixote, 2014) é uma novela de Patrícia Reis, bem no seu jeito incisivo e económico de narrar crises individuais, que não nos separam assim tanto uns dos outros. Numa escrita crua e por vezes até pesada, pela aparente simplicidade com que assume imagens dramáticas, a autora consegue unir-nos pela dor e pela derrota, expondo questões, sem resposta, que todos temos dentro de nós.
E é assim que, com um “Desculpa” em jeito de apresentação, um homem manobra um copo, hipnotizado pelos líquidos que se misturam, destilando pensamentos entre goles de whisky. Imaginamo-lo curvado – e até derrotado -, sob o balcão, quando confessa: “Fiquei a olhar-te para saber se a língua que nos separa é um mar calmo onde exista salvação. Sim, estou aqui para me salvar. Se tu me salvares, será melhor“.
Do outro lado não há resposta. Há um mutismo abafado pelos tilintares habituais de um bar, entrecortado entre meneios do vestido vermelho, alguma troca de olhares enquanto o copo se enche e surge uma suspeita: talvez ela o escute, mas por certo não o entenderá – e talvez isso nem lhe interesse. E ele, falará mesmo? Ou apenas verbaliza, na sua cabeça, um rol de desabafos, confessando desde cedo que está numa noite má, provavelmente numa fase pior ainda? Talvez fale, talvez use a graça que todos lhe atribuem (e que sente que o diminui) e aproveite o conforto do desconhecido e fale, fale sim, verbalize dores e culpas, confissões e banalidades, numa conversa com uma mulher imaginária, em quem vai diluindo as suas derrotas.
“As expectativas que tenho não são nada, não afectam ninguém. Nem mesmo eu espero seja o que for de mim próprio. Para quê?
(…)
Fiz uma lista com as minhas virtudes. Era uma folha A4 sem muitas palavras. Talvez possa destacar uma. Silencioso. Sempre fui. Tenho horror ao ruído. Dos carros, das pessoas nos centros comerciais, o barulho dos que atiram beatas para o chão, dos que gesticulam quando falam. O ruído perturba-me.”
A quem interessam as memórias deste homem? Provavelmente já nem a ele mesmo. No entanto, é da insistência que se cria a necessidade e, de tanto insistir no matraquear das suas memórias, elas respondem-lhe com necessidades que desconhecia, com emoções que não controla. Ele não é só um homem em busca de salvação: é um homem inteligente, um tanto cínico, até colérico, em quem a ironia da vida colocou uma impressão digital inapagável, um rasto de dor e derivações que vieram abalar as suas convicções e o levaram a quebrar o seu silêncio.
“… a sua memória passou a ser minha. Há dias em que me olho ao espelho e o vejo. Ter um irmão parece ser uma contradição. É como nós e, ao mesmo tempo, é outra pessoa. Nunca perdoamos aos irmãos as diferenças que existem. (…) Assumimos as nossas derivações para sobreviver.”
Talvez o difícil seja perdoar, aceitar essas derivações que são parte de nós, até conseguir fazer delas palavras, palavras das que doem, verbalizá-las e seguir com elas, na normalidade que for possível. Isso e “um stop para os pensamentos, uma curva à direita para mudar de rumo“. O rumo que a escrita de Patrícia Reis toma é esse mesmo: o das palavras que doem.
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