“Há algo peculiar nas críticas. Referimo-nos à ficção como um reflexo da realidade, e dizemos que a não-ficção tem ares de romance”. Algo assim foi escrito pelo jornalista Parul Sehgal no The New York Times, ao fazer a crítica a “Consentimento” (Alfaguara, 2020), o mais recente livro de Vanessa Springora, o que não podia estar mais longe da verdade.
Conhecer a história da autora nas mãos de um pedófilo, quando tinha 13 anos, é descobrir o pior do ser humano. Vanessa foi vítima de um homem de 50 anos, figura intelectual do seio literário e ilustre personagem no cenário político-social nos anos 1960, no auge da renovação de valores das gerações jovens, onde se enquadrava ainda uma revolução sexual sem retorno.
Não se trata apenas da história de uma rapariga que é alvo de um predador, mas do estudo do contexto em que a rapariga está inserida e da mentalidade em plenos anos 1980. A direita contra a esquerda? O bem contra o mal? A moral contra o desejo? O grupo contra o indivíduo? Vanessa Springora levanta o pano e revela o processo de sedução – muito rápido e mais prático do que os revelados em obras de ficção, como “Minha Sombria Vanessa”, de Kate Elizabeth Russell –, a evolução do relacionamento e as consequências na vida da vítima a curto, médio e longo prazo.
O que nunca se descarta neste tipo de relacionamentos desequilibrados e moralmente questionáveis é a vítima ser encarada como (parcialmente) responsável. Ora, se uma rapariga de 13 anos, que mal deixou de ser criança, não tem o cérebro totalmente desenvolvido, se lhe falta experiência de vida, se lhe falta maturidade e se mal conhece o mundo, como pode ser encarada como responsável nas mãos de um homem reconhecidamente capaz, inteligente, respeitado e independente? A visão de Vanessa no livro reflecte a sua experiência nas mãos de G.M., enquanto consegue, de forma primorosa, desvendar as intenções do amante e as suas técnicas de manipulação.
Vanessa não conseguiu encontrar justiça, mas encontrou nos livros a forma de vingança: tu és escritor e é aí que te vou atacar. Escreveu a sua história e publicou-a e, no momento em que chegou aos primeiros leitores, desvendou-se a identidade do misterioso G.M.: Gabriel Matzneff, escritor que publicou inúmeros livros sobre relações sexuais entre adultos e crianças e que alegadamente, a propósito do livro de Springora, são baseados em episódios reais.
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