Publicada com o selo da editora belga Casterman, entre Março de 2006 e Outubro de 2014, a série Armazém Central é composta por 9 tomos, e conta com textos e desenhos de dois vultos da banda desenhada: Régis Loisel e Jean-Louis Tripp.
A ideia de uma colaboração, algo raro acontecer com dois nomes consagrados da BD – que fundiram a sua individualidade num estilo comum -, começou a germinar desde Julho de 2003, altura em que, na cidade de Montreal, Canadá, Régis Loisel e Jean-Louis Tripp passaram a partilhar o mesmo atelier. Na altura, Loisel trabalhava no último tomo de Peter Pan – série que está a ser publicada de momento em Portugal numa colecção Asa/Público – e, quanto a Tripp, desenhava Paroles d`Anges. Perceberam então que tinham muito em comum, e que poderiam trabalhar em algo que realçasse a sua complementaridade. Tal como se lê no texto de introdução a “Confissões – Montreal” (Arte de Autor, 2020”, álbum que reúne os tomos 4 e 5 da série, “se aquilo de que Régis mais gosta é de construir uma história com um lápis ágil e traços generosos… Jean-Louis vibra ao deixar transparecer, através do seu traço e luminosidade, ambientes sensíveis e brilhantes”.
Uma vez que a acção desta história se passa nos anos 20 do século XX numa aldeia rural perdida na imensidão do Quebeque, lugar onde a língua falada é assim para o pitoresco e não muito fácil, os autores pediram a colaboração de Jimmy Beaulieu, um autor de Montreal que os ajudou a alcançar um patamar de linguagem acessível aos leitores dos dois lados do Atlântico – no caso português, a tradução esteve a cargo de Pedro Cleto.
A complementaridade entre os dois autores é desde logo radiografada nas páginas de entrada a “Marie” (Arte de Autor, 2021), o primeiro tomo da colecção. De um lado, a primeira etapa do processo desenvolvida por Loisel e, do outro, a segunda vencida ao sprint por Tripp. Um trabalho a quatro mãos onde se consegue perceber o estilo de ambos, mas que resulta num estilo partilhado que dá ao leitor motivos suficientes para celebrar.
“Marie” tem como primeiro narrador Félix Ducharme, nascido em Notre-Dame-des-Lacs, Quebeque. Os seus pais eram os donos do Armazém Central, que lhe foi entregue como herança. Félix era casado com Marie Coutu, uma rapariga de Chicoutimi, cinco anos mais nova, com quem casou vinte anos atrás e de quem se despede nessa noite, a do seu falecimento. A partir daqui, e depois de assistirmos ao devido enterro e homenagem, acompanhamos Marie e as suas dúvidas em permanecer num lugar que, agora, lhe parece dizer muito pouco: “No fundo, o que me prende aqui?”.
Este é o início de uma história de emancipação, que será explorada com primor nos tomos seguintes, e no qual se começa a perceber a dinâmica da aldeia, a relação dos seus habitantes com a terra, a distância imensa a que estão do mundo urbano, o peso da religião, num lugar propício a conversas sussurradas, à coscuvilhice e à criação instantânea de boatos.
Saltando alguns volumes para “Confissões – Montreal”, encontramos um texto para aqueles que não seguiram a história desde o primeiro volume, mas o melhor mesmo é mesmo visitar este Armazém Central seguindo a linha cronológica.
Resumidamente, o ano é 1926 e, quanto ao lugar, estamos em Notre-Dame-des-Lacs, no Quebeque. Uma aldeia que assenta na pastorícia e na caça, e que tem como grande referência o Armazém Central, que vende um pouco de tudo: alimentos, ferramentas, artigos diversos para a casa, vestuário e tudo aquilo que os frequentadores se lembrarem de encomendar. Ao leme do armazém está Marie, mesmo que segundo o olhar da época – e sobretudo do lugar – não veja com muitos bons olhos uma mulher comerciante que ainda por cima tem estofo para conduzir um camião.
De forma algo acidental, chega também à aldeia um tipo mais velho com o nome de Serge, que da desconfiança inicial acaba por se tornar indispensável, tornando-se proprietário e chef do elegante restaurante “Le Raviole”.
Confissões, o primeiro dos tomos reunidos neste volume, mostra-nos quase como que num olhar cinéfilo do tempo dos filmes mudos a vida no campo, o papel cuidador atribuído e desempenhado pelas mulheres, o trabalho animal a ruralidade. Vemos mulheres a amamentar, (sobretudo) homens a lavrar o campo.
Por esta altura, Marie e Serge vivem juntos, pressionados pelo padre e “o conjunto dos nossos concidadãos” a oficializar a coisa. Porém, uma confissão de Marie deixa o padre a ver santinhos, numa história onde o medo de sair do armário é amortecido pelas palavras de um quase anónimo da aldeia: “Para ti, haverá sempre um copo de licor de ameixa e um martelo, sou eu que te digo…”. Até que um boato resolve a coisa por linhas tortas: “Se fosses uma mulher, gostavas de ter um homem que não conseguisse na cama?”.
Quanto a Montreal, apresenta-nos uma introdução aos pecados do ventre, onde a culpa surge atirada como areia aos olhos e onde a verdade nos é mostrada por uma avozinha no seu leito de morte: “O que os outro dizem não é nada importante”. Um tomo fabuloso que mostra como uma mulher proscrita pode, em boa verdade, abalar os alicerces de toda uma comunidade. E ter o direito a sonhar.
Sem Comentários