Numa época de contrariedades onde a maior dificuldade era perceber a transfiguração do mundo, “um reinventar lento e condicionado que gritava assomos de retrocesso civilizacional“, uma mulher vive uma noite aterradora, abandonada à solidão e ao desamparo, confinada a lamber memórias. E logo ela, tão pouco dada a recordações, já que o que lhe interessava era viver, viver intensamente – e que tinha encontrado com quem o fazer em plenitude.
“O pior da solidão é a inconstância. Pensamentos circulares, ideias fixas, uma autopiedade quase inocente. Susana Ribeiro de Andrade sabia-o porque sempre fora ciente do universo paralelo que era capaz de construir, da força que poderia ter (…).”
Numa época já de si paralela e assombrada pela indefinição e a castração de certas liberdades, chega-nos “Da Meia-Noite às Seis” (Dom Quixote, 2021), um relato envolvente pela mão de Patrícia Reis, onde interessa explorar o quão complexo são as relações, especialmente quando a busca pelo sentido da vida e da identidade são ainda uma prioridade para cada indivíduo. E, talvez por isso, repete-se e intensifica-se a questão levantada por Caetano Veloso: «Existirmos: a que se destina?».
Susana Ribeiro de Andrade talvez desconhecesse a força que tinha para se reinventar, entre momentos em que “ia perder o elevador“. Sabia-se cobarde, pragmática, realista e inteligente e vivia muito ao sabor do acaso, como uma folha solta ao sabor do vento. E dessa forma, meio ao acaso, foi o regresso forçado ao trabalho a sua salvação e o que permitiu cruzar-se com Rui Vieira. E, mesmo ao acaso e contra o que era habitual de ambos, reinventaram a solidão das horas mortas, um território radiofónico abandonado.
Avançar não era porém esquecer, e o luto era bastante concreto. Embora pudesse sentir a morte como aleatória, inconveniente e surpreendente, ela fazia-se sentir todos os dias, em expressões (já) banais e em horas que se julgavam sós, como aquelas que agora povoavam e davam sentido à sua vida. Da meia-noite às seis, Susana Ribeiro de Andrade e Rui Vieira contrariavam a negritude e a inevitabilidade da ordem ascendente do mundo. E, mesmo não tendo uma resposta para Caetano, podiam avançar com uma certeza: «Quando eu penso no futuro / Não esqueço o meu passado» – que, na voz de Marisa Monte e Paulinho da Viola, resume delicadamente parte das angústias deste livro.
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